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DOI: https://doi.org/10.48160/18517072re60.556
O computador brasileiro em busca de sua alma
Márcia Regina Barros da Silva*
Ivan da Costa Marques**
Henrique Luiz Cukierman***
Alberto Jorge Silva de Lima****
Resumo
Discutimos como as experiências brasileiras com uma reserva de mercado para
desenvolvimento de uma indústria de minicomputadores no Brasil revelam não
apenas intervenções, mas também ambições dos participantes que eram
consideradas parte de futuros plausíveis do Brasil na época. Concentramo-nos no
projeto de uma política pública para desenvolver uma "indústria de
minicomputadores genuinamente brasileira" na década de 1970 até meados da
década de 1980. Destacamos a presença de comunidades relativamente abertas de
especialistas, que vão além dos limites estritos de seus campos profissionais,
cruzam fronteiras disciplinares, se intrometem em outras disciplinas e entram em
territórios cujas fronteiras são às vezes guardadas à força por aqueles que não
aceitam os especialistas intervencionistas que chegam lá.
* Universidade de São Paulo (USP). Correo electrónico: marciabarrossilva@usp.br
** Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Correo electrónico: imarques@nce.ufrj.br
*** Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Correo electrónico: hcukier@cos.ufrj.br
**** Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET∕RJ). Correo
electrónico: alberto.lima@cefet-rj.br
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Lembrando Stengers, focalizamos essa perspectiva de intervenção, esse caráter
subversivo potencialmente embutido em comunidades de especialistas que se
tornam "comunidades de conhecimento intervencionistas", o leitmotiv das raras
ocasiões em que especialistas subalternos podem falar.
Palavras Chave
MINICOMPUTADORES - SUBALTERNIDADE ESPECIALISTAS - COMUNIDADES PROFISSIONAIS -
POLÍTICA TECNOLÓGICA - DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA
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Introdução
Em seu livro "Em meio ao catastrófico: resistindo à barbárie que se aproxima”, a
filósofa belga Isabelle Stengers descreveu a capacidade de "pensar e agir em
conjunto" como a possibilidade de uma "inteligência coletiva" incorporada em
"grupos que reivindicam a capacidade de intervir, de complicar as coisas, de se
intrometer naquilo que - tanto do ponto de vista do Estado quanto do Empreendedor
- não lhes diz respeito" (Stengers, 2015:77)1. Para ela, o engajamento em uma
comunidade de conhecimento faz com que seus participantes se destaquem não
apenas como usuários que podem participar da resolução de problemas como é
esperado de usuários comuns de uma expertise técnica, mas também como
praticantes que participam da formulação de problemas. Ela espera que os membros
de tais coletivos abertos tenham a perspectiva de intervenção e vivam a tensão
envolvida na escolha das formas de intervir.
Mais um autor pode auxiliar na análise do quadro temporal com o qual
buscamos situar nossa análise. Com Reinhart Koselleck vemos as noções de
progresso como a “primeira categoria na qual se deixa manifestar uma certa
determinação do tempo, transcendente à natureza e imanente à história” (Koselleck,
2006: 75), portanto, constituída pela humanidade, como obra da consciência
histórica e não da natureza. Neste sentido, indicar vemos que uma certa ‘expectativa
agregadora’, que integrou uma ideia de expansão das previsões de futuro, que
funcionavam no caso da informática enquanto permanecesse não realmente
determinada (Koselleck, 2006: 11). Assim o futuro poderia vir a integrar tanto a
1 Tradução em português, Stengers, I. (2015), No tempo das catástrofes - resistir à barbárie que se
aproxima, São Paulo, SP, Cosac & Naify.
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revista quanto o Estado ditatorial, na revista, o futuro descrevia e desenhava um
futuro possível, que não se concretizou, enquanto a ditadura foi o porvir imaginado
como ilimitado e concreto (Silva, 2020).
Parece- nos que esse tipo de tensão na história da política industrial da
informática brasileira nos anos 1970 ∕ 80, ao abordá-la de uma perspectiva da Teoria
Ator-Rede (Latour, 2005).
Discutimos como as experiências brasileiras com a reserva de mercado para
desenvolvimento de uma indústria de minicomputadores no Brasil revela não apenas
intervenções, mas também ambições dos participantes que eram consideradas parte
de futuros plausíveis do Brasil na época. Concentramo-nos no projeto de uma
política pública para desenvolver uma "indústria de minicomputadores genuinamente
brasileira" na década de 1970 até meados da década de 1980. Destacamos a
presença de comunidades relativamente abertas de especialistas, que vão além dos
limites estritos de seus campos profissionais, cruzam fronteiras disciplinares, se
intrometem em outras disciplinas e entram em territórios cujas fronteiras são às
vezes guardadas à força por aqueles que não aceitam os especialistas
intervencionistas que chegam lá.
Foi especialmente, como veremos, uma comunidade de especialistas,
técnicos em informática e engenharia de computação, que foram além dos limites de
seus campos profissionais para intervir, intrometendo-se em outros domínios para
desempenhar um papel crucial na tentativa brasileira de dominar a tecnologia da
informática.
Em um panorama parcial que a Teoria Ator-Rede nos permite colocar em
cena, focalizamos essa perspectiva de intervenção lembrada por Stengers, esse
caráter subversivo potencialmente embutido em comunidades de especialistas que
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se tornam "comunidades de conhecimento intervencionistas", o leitmotiv das raras
ocasiões em que especialistas subalternos podem falar.
“Democracia relativa” e um espaço específico para a
autoria
Grande parte deste estudo é baseada na coleção da revista DADOS&Idéias (1974-
1980).2 Considerando a ideia de "possibilidades de espaços para autoria" em
regimes autoritários, é possível situar a revista DADOS&Idéias em um espaço sui
generis chamado de "democracia relativa", um truque retórico colocado em
circulação na década de 1970 pela ditadura brasileira: em vez de simplesmente
reprimir todas as formas democráticas, a ditadura tentou domesticá-las. Ou seja, a
ditadura ensaiou tolerar alguma (mas não toda) liberdade de expressão por parte de
algumas (mas não todas as) pessoas. Indivíduos como profissionais tecnicamente
qualificados, incluindo doutores na academia e altos níveis da administração
governamental, estavam entre aqueles que, embora com prudência e não sem risco,
podiam expressar suas visões e opiniões, e dirigir propostas ao governo.3 Foi nesse
“espaço aberto” para autoria que agiram e se manifestaram grupos de profissionais
2 A revista DADOS&Idéias era editada pelo SERPRO – Serviço Federal de Processamento de Dados
– definido como uma empresa estatal no âmbito do Ministério da Fazenda. Os artigos da revista
foram escritos por um conjunto de autores, na sua maioria professores universitários ou funcionários
“técnicos” de empresas estatais. Dentre os artigos que mais enfatizavam a existência no Brasil de
então de uma “capacidade tecnológica limitada, mas significativa” para projetar, fabricar, vender e
usar sistemas de minicomputadores no Brasil destacando-se, por exemplo, os de Carlos Ignácio
Mammana, Dioclessiano Pegado, Claudio Zamitti Mammana, Ivan da Costa Marques, Mario Dias
Ripper, Silvio Paciornik, Wilson de Paulo Pádua.
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de computação de alto nível técnico, com a intenção de definir e defender a
implementação de uma política industrial para a fabricação de minicomputadores no
Brasil na década de 1970. No que se refere à organização de grupos para ação
política, a “democracia relativa” implicava que certos grupos de pessoas, não todos,
teriam permissão para reunirem-se e expressar suas opiniões sobre certos assuntos,
não todos.
Na “democracia relativa” imaginada pelos comandantes militares da ditadura,
os generais Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, tratava-se de perder alguns
anéis, mas preservar outros, e, obviamente, manter as próprias mãos livres.
Significativamente, de acordo com as tradições e a cultura política brasileira, o
processo de colocação dessa política em prática foi realizado de “formas lentas,
graduais e seguras, permitindo a acomodação das forças em disputa para evitar
choques sérios” (Motta, 2014: 327).
Figura 1. Capa do primeiro número de DADOS&IdéiasAgosto / Setembro de
1975
Fonte: DADOS&Idéias (1975, 1)
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O país tem democracia ‘relativa’, diz Geisel. Um mês e um dia após fechar o
Congresso e decretar o Pacote de Abril, o presidente general Ernesto Geisel diz a
jornalistas franceses que o Brasil é uma democracia "relativa". "Todas as coisas do
mundo, exceto Deus, são relativas", disse Geisel. “Então a democracia que se
pratica no Brasil não pode ser a mesma que se pratica nos Estados Unidos da
América, na França ou na Grã-Bretanha." Uma semana depois, em entrevista à
francesa RTF 2, ele reafirmou: "O Brasil está vivendo um sistema democrático
dentro de sua relatividade." (Memorial da Democracia, 2 de maio de 1977, disponível
em: http://memorialdademocracia.com.br/card/pais-tem-democracia-relativa-diz-
geisel) 4
DADOS&Idéias conseguiu ser publicada de 1974 a 1980 pelo Serviço de
Processamento de Dados do Governo Federal do Brasil – SERPRO – órgão do
Ministério da Fazenda que gozava de alto prestígio técnico entre acadêmicos e na
burocracia governamental.5 Abrigada no SERPRO, a revista DADOS&Idéias
circulava no espaço de "democracia relativa" aberto à camada predominantemente
civil de profissionais de computação na burocracia da ditadura militar que governava
o Brasil na época. É digno de nota que os artigos de DADOS&Idéias evitavam
4 Quando morreu em 1996, o General Geisel foi retratado na mídia como um governante que deixou
ao país um saldo positivo como o iniciador da abertura, o ditador que impulsionou o processo de
"relaxamento" contribuindo para o retorno da democracia no Brasil. Justo, M. A. C. (1995), Os
legados e as heranças do regime militar de 1964 ao espaço geográfico-territorial brasileiro, São
Paulo, Universidade de São Paulo.Em maio de 2018, no entanto, documentos da CIA indicaram que
ele havia concordado com uma política de assassinatos de pessoas supostamente "subversivas".
(https://brazilian.report/power/2018/05/11/cia-document-brazil/ acesso em 17/09/2018, 17:40 BSB)
5O SERPRO foi criado no primeiro ano do regime militar pela Lei nº 4.516, de 12 de dezembro de
1964, dez anos antes de DADOS&Idéias começar a ser publicada.
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quaisquer assuntos que levassem a questionar a relatividade da abertura política
proposta, como, por exemplo, a ausência de sindicatos de trabalhadores que não
tinham voz nesse espaço de autoria. Dessa forma, as propostas soavam como
tecnicamente focadas e politicamente toleráveis ou mesmo desejáveis em meio ao
discurso desenvolvimentista ditatorial.
No entanto, os autores discutiam propostas de ações governamentais que
eram, é claro, inseparavelmente técnicas e políticas. A maioria dos autores e leitores
eram profissionais de computação empregados publicamente, como programadores
e engenheiros, pessoal administrativo de empresas estatais, acadêmicos em
departamentos de "informática" (ciências da computação e da informação) e
engenharia, e jornalistas. Embora publicada, financiada e distribuída por uma
agência estatal do governo ditatorial, DADOS&Idéias foi tolerada como um veículo
de um público limitado e qualificado que não representava ameaça à ditadura militar.
Era, portanto, adequada para ocupar o espaço para autoria aberto no regime
ditatorial e desempenhou um papel fundamental na formação de uma comunidade
especial de profissionais de computação que, de fato, criaram e utilizaram o veículo
como um espaço para discussões de suas ideias.
Uma comunidade de profissionais de informática
A partir de reuniões inicialmente promovidas por um “Conselho de Reitores” de
universidades no início da década de 1970, um grupo de especialistas em
computação na academia conseguiu formar uma comunidade cujas atividades se
estenderam para além dos quadros técnico-acadêmicos, aproveitando a
oportunidade da "democracia relativa". Antes mesmo de se autodenominar “uma
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comunidade de informática, esse grupo conseguiu estabelecer dispositivos de
comunicação voltados para dois propósitos: (1) um espaço para conceber e discutir
políticas industriais destinadas a combater a dependência brasileira da tecnologia
computacional estrangeira; e (2) propor políticas públicas para superar essa
dependência ao governo ditatorial. Esses dispositivos foram, inicialmente, os
encontros anuais de "computação nas universidades", chamados Seminário de
Computação nas Universidades (SECOMU) e logo depois a revista DADOS&Idéias.
A revista DADOS&Idéias, como dispositivo de comunicação, operou e materializou a
"comunidade de informática". Jornalistas, economistas, historiadores e sociólogos
evidenciaram que aquela “comunidade de informática” alegava ser tecnologicamente
possível suprir o mercado interno brasileiro de minicomputadores com produtos que
seriam projetados por profissionais brasileiros6 (Adler, 1987, Dantas, 1988, Evans, et
ali, 1992, Vigevani, 1995, Schoonmaker, 2002 y Vianna, 2016).
Em meados da década de 1970, essa “comunidade de informática” era
composta por três tipos de profissionais, dois deles facilmente reconhecidos: (1)
professores universitários e (2) profissionais de computação de alto escalão na
gestão dos departamentos estaduais de processamento de dados. Muitos deles
tinham retornado recentemente de seus mestrados e doutorados nos EUA, onde
aprenderam e se familiarizaram com a tecnologia da computação, incluindo design e
fabricação de computadores.7 Eles gozavam de respeito e prestígio como parte de
6Os minicomputadores são muito diferentes dos computadores pessoais ou microcomputadores
este é um ponto crucial, como veremos.
7 [trecho retirado dessa nota de rodapé para manter o anonimato dos autores – o trecho será
recolocado no caso de aprovação para publicação]. As adversidades dos autores de DADOS&Idéias
serão tratadas abaixo. Para uma descrição detalhada do que aconteceu pessoalmente a esse grupo
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uma elite técnica atualizada, mesmo entre os militares, apesar da coloração de
esquerda que lhes rendeu o apelido de “barbudinhos”.8
O terceiro tipo de profissionais na comunidade da informática era o dos
oficiais militares, menos visíveis e politicamente esquivos, mais resistentes a deixar
clara sua posição individual (política), (pelo menos para os civis).9 Os primeiros
contatos entre acadêmicos e funcionários burocráticos aconteceram e foram
cautelosamente nutridos em meio à formação de um grupo de profissionais unidos
pelo interesse compartilhado em design de computadores e indústria de
computadores. Foi dessa comunidade que surgiram os organizadores e a maioria
dos autores de DADOS&Idéias. Eles começaram a publicar, debater e avaliar
propostas para a construção de uma indústria local de minicomputadores, apesar do
ambiente da ditadura geralmente desconfiado e avesso a diálogos. Pode-se notar,
no entanto, que na “democracia relativa”, ideias bem comportadas sobre como um
grupo de especialistas em computação poderia contribuir para uma indústria
baseada em tecnologia de computadores genuinamente brasileira foram inicialmente
de pessoas, veja Dantas, V. (1988), Guerrilha tecnológica: a verdadeira história da política nacional
de informática, Rio de Janeiro, Livros Técnicos e Científicos.
8 “A percepção dos técnicos de computação brasileiros de uma conexão entre a industrialização local
e a melhoria da chocante sociedade desigual do Brasil deu ao seu projeto um tom 'esquerdista'. Suas
barbas transmitiam a mesma impressão e lhes renderam o apelido de barbudinhos (Evans,
1995:107).
9 O projeto de um minicomputador, executado na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e
na Universidade de São Paulo foi patrocinado pela Marinha do Brasil e denominado G-10 como
homenagem póstuma ao Comandante Guaranys, oficial da Marinha. Entre os poucos militares que se
manifestaram, Jorge Monteiro Fernandes, então major da Aeronáutica, discretamente e com
disciplina, apoiou firmemente o ímpeto participativo da comunidade da informática.
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bem-vindas. Essas ideias não soavam incompatíveis com a ideologia
desenvolvimentista da ditadura. Além disso, havia nos anos 1970 um órgão
especialmente posicionado para fortalecer os vínculos entre acadêmicos e
administradores de centros de processamento de dados: a CAPRE (Coordenação
das Atividades de Processamento Eletrônico), órgão da SEPLAN (Secretaria de
Planejamento da Presidência da República) (atual Ministério do Planejamento).
Embora pequena, com não mais do que algumas dezenas de funcionários, a
CAPRE gerenciava centralmente a alocação de computadores comprados ou
alugados pelo Governo Federal, envolvendo não apenas aquisições, mas também
troca de máquinas entre universidades e outros órgãos governamentais. Não
demorou muito para que reuniões envolvendo acadêmicos e gestores de centros de
processamento de dados fossem patrocinadas pela CAPRE. A ideia de que as
“profecias de desenvolvimento” dos barbudinhos entrincheirados na CAPRE só
poderiam contribuir para o “desenvolvimento do Brasil” não encontraram oposição
significativa.
Uma visão do futuro do Brasil como um país desenvolvido
Desde o início da década de 1970, centros estatais de processamento de dados e
grupos acadêmicos que reuniam capacidade técnica em informática no Brasil
realizavam pesquisas para agregar conhecimento local às tecnologias estrangeiras,
obtendo soluções mais eficientes e eficazes para problemas locais.
Projetos evidenciando essa capacidade partiram por exemplo de professores
e pesquisadores da Núcleo de Computação Eletrônica (Núcleo de Computação
Eletrônica) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NCE/UFRJ). Em meados da
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década de 1970, havia cerca de 100 unidades do sistema IBM-1130 no Brasil. O
IBM-1130 precedeu os minicomputadores. Era um mainframe de baixo custo
adotado em algumas dezenas de universidades brasileiras. A IBM não fornecia uma
unidade de processamento eletrônico para operações aritméticas de números
fracionários (por exemplo “o resultado de 7,2 vezes 3,14 é 22,608” - números
fracionários são chamados números de ponto flutuante no jargão da engenharia da
computação). Ou seja, o hardware do sistema IBM-1130 processava direta e
eletronicamente apenas números inteiros como 7, 2, 3, 14, 22 e 608, chamados
“números de ponto fixo”. Consequentemente, as operações com números
fracionários eram executadas por software, usando algoritmos demorados que
reduziam o rendimento (throughput) do sistema. Os profissionais do NCE/UFRJ
projetaram uma unidade eletrônica de processamento de números fracionários,
chamada PPF, que se integrava ao Sistema IBM-1130 por meio de um único
soquete.10 Essa integração por meio de um soquete era um requisito da IBM para
continuar oferecendo o serviço de manutenção do sistema. Uma vez que a única
tomada multipinos era desconectada, o Sistema IBM-1130 retornava à sua
integridade conforme fornecido pela IBM. O projeto apresentou um desafio técnico
formidável que a equipe do NCE/UFRJ enfrentou com sucesso. Um engenheiro de
computação pode apreciar totalmente o desafio deste projeto de hardware e
software do ponto de vista de um especialista. Mas igualmente digno de menção, se
pensarmos em termos de visões do futuro naquele passado, era a justificativa do
projeto. Como os Sistemas IBM-1130 no Brasil eram usados em universidades para
10 PPF abreviando “Processador de Ponto Flutuante”. Feita uma modificação invisível no software, o
PPF era um dispositivo plug-in.
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fazer cálculos de números fracionários, o PPF dobrava e às vezes triplicava o
rendimento dos Sistemas IBM-1130 em programas envolvendo cálculos com
números fracionários. Os especialistas intervencionistas justificaram o projeto para o
então BNDE afirmando que o PPF representava a oportunidade de adiar por alguns
anos a importação de novos computadores para substituir o IBM-1130, o que de fato
ocorreu parcialmente. O NCE ∕ UFRJ passou o protótipo do PPF para um pequeno
fabricante de artefatos eletrônicos (MICROLAB) que fabricou cinco unidades que
funcionaram por alguns anos em universidades brasileiras (Faller et al, 1973,
Santos, 2004).
Outro projeto de pesquisa desenvolvido no NCE/UFRJ foi um compilador
FORTRAN (FORmula TRANslator) alternativo para o sistema IBM-1130,
denominado COPPEFOR. Um compilador é um código (programa) que traduz um
programa escrito em outra linguagem, na época chamada de linguagem de alto
nível, como a linguagem FORTRAN, em código binário, que na verdade é, em última
instância, o único código executável em computadores digitais. Em linguagens de
alto nível, como o FORTRAN, o programador usa números e palavras para se referir
às quantidades referenciadas no programa. Por exemplo, mês, salário etc. são
referenciados a posições precisas na memória do computador, o que permite ao
programador escrever “pagamento = horas * salário + benefícios” em vez de ter que
especificar o código binário para “+” e “*” e as posições numéricas para
“pagamento”, “horas”, “salário” e “benefícios” na memória do computador. Acontece
que o compilador FORTRAN fornecido pela IBM para o sistema IBM-1130 era
apropriado para o ambiente de negócios e desnecessariamente lento para o
ambiente acadêmico. O compilador IBM trabalhava com uma longa sequência de
pedaços de código buscados no disco do computador, o que produzia um código
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objeto mais adequado para processamento comercial, onde um código já compilado
é usado muitas vezes antes que uma nova compilação seja necessária. Mas essa
situação é o oposto do que acontecia nas atividades didáticas de ensino de
programação FORTRAN na UFRJ, daí o atrativo de desenvolver o compilador
COPPEFOR que residia inteiramente na memória, dispensando a sequência de
acessos demorados ao disco do computador (fases do compilador IBM). O
COPPEFOR compilava mais de dez vezes mais rápido as centenas de pequenos
programas FORTRAN de alunos que eram processados em lote pelo Sistema IBM-
1130. Novamente, a justificativa ultrapassou as referências técnicas do projeto: fazer
um tipo de pesquisa que fosse simultaneamente um desafio técnico e resultasse no
aproveitamento máximo de um recurso caro como um computador importado, e
fazer isso explicitamente visando mostrar para que tipo de aplicações a capacidade
técnica local deveria ser usada (Araújo et al., 2014)
Figura 2. Panfleto publicitário do PPF, fabricado pela Microlab
Fonte: Microlab
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DADOS&Idéias moldou e foi moldada pela comunidade de informática. De vários
pontos de vista, seus artigos alegavam que existia uma capacidade tecnológica
"limitada, mas significativa" em informática no Brasil. E sua visão era que essa
capacidade oferecia uma oportunidade de criar uma indústria de minicomputadores
baseada em design de software e hardware por engenheiros e programadores
brasileiros.
DADOS&Idéias e outros veículos da época apresentam uma série de
resultados tecnológicos obtidos em um pequeno número de grupos de pesquisa
alocados em universidades brasileiras e centros de processamento de dados
estatais.11 Muitos artigos apontavam ações para o uso e expansão dessa
capacidade tecnológica "limitada, mas significativa". Os resultados foram, em sua
maioria, artefatos digitais integrando hardware e software: pequenos computadores
(chamados de "terminais inteligentes"), unidades de processamento dedicadas,
modems, interfaces etc. Eles assumiram a forma de "protótipos", ou seja, montagens
pré-industriais que testam as ideias básicas e os princípios teóricos que orientam o
design de um produto industrial. DADOS&Idéias cruzava fronteiras disciplinares e
não circulou como um periódico propriamente acadêmico. Por exemplo, justapôs e
articulou conceitos tecnológicos e políticos de uma forma ainda hoje difícil de ser
encontrada em periódicos acadêmicos. Os artigos técnicos não esconderam os
esforços gerais daquele pequeno grupo de autores para ganhar apoio e aliados para
seus trabalhos e suas propostas, não apenas na florescente “comunidade da
11 Além do SERPRO, que pertencia ao Governo Federal, os centros de processamento de dados dos
estados de São Paulo (PRODESP), Minas Gerais (PRODENGE) e Rio Grande do Sul (PROCERGS)
contavam com funcionários altamente qualificados que vislumbravam possíveis inovações locais,
igualmente eficazes e mais baratas do que sistemas fornecidos por gigantes internacionais.
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informática” com grupos universitários e técnicos dos centros de processamento de
dados, mas também com um público mais amplo, incluindo os militares do governo.
Desde o início da década de 1970, conversas públicas cobriram tópicos
relacionados a problemas de tecnologia da informação, abrangendo desde
discussões sobre processamento de dados até questões de política industrial, o que
despertou interesse não apenas entre a indústria e agências governamentais, mas
também entre usuários de computadores e a academia em geral.12 Desde sua
primeira edição em junho de 1975, vários autores de DADOS&Idéias buscaram
influenciar a definição de uma política nacional de informática. Em que sentido, no
entanto, isso significou a busca por um computador brasileiro? Quem apostou nisso
e qual foi a aposta?
Naquela época o mercado de minicomputadores ainda era incipiente no Brasil
e não havia fabricantes locais. O dilema sobre a importação de tecnologia ou seu
desenvolvimento no Brasil era dominante em DADOS&Idéias. Seus artigos
alegavam que a situação de dependência tecnológica do Brasil excluía a
possibilidade de se montar uma indústria de minicomputadores baseada em
tecnologia local por meio de mecanismos de livre mercado. Em conjunto, os artigos
publicados em DADOS&Idéias apostavam em um futuro diferenciado. A seguir, nos
concentramos em entender o futuro do Brasil tal como vislumbrado a partir daquele
passado, o futuro que a “comunidade de informática” esperava que resultasse de
sua intervenção e quais caminhos seriam trilhados em direção a esse futuro.
12 É digno de nota que os “usuários de computador” naquela época eram grandes instituições, como o
governo ou grandes empresas.
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Desde o início, ficou claro que as propostas e discussões sobre a obtenção
de recursos para o uso e posterior desenvolvimento daquela capacidade tecnológica
"limitada, mas significativa" deveriam ser abertas. Isso por si só era um diferencial no
ambiente ditatorial. Já na capa do primeiro número da DADOS&Idéias destaca-se a
mensagem: "Por uma política de informática brasileira...". Neste mesmo número, o
editorial diz que "A DADOS&Idéias não será um periódico do SERPRO, mas sim um
periódico de toda a comunidade de informática. Vale dizer, um fórum, onde os
artigos serão assinados e não refletirão necessariamente a posição da empresa..."
(Távora, 1975).
Atendendo às expectativas do editorial, quatro artigos daquele número
propuseram e discutiram a caracterização de uma política nacional de
processamento de dados e indústria de informática. Os títulos dos artigos do
primeiro número apresentam uma lista eloquente: O círculo vicioso da dependência
tecnológica, do jornalista José Martinez; A polêmica realidade da ociosidade da
informática no Brasil, do jornalista Rui Xavier; O momento decisivo para o
computador brasileiro, do engenheiro Ivan da Costa Marques; O problema da
fabricação do computador nacional: uma solução, do engenheiro Sergio Telles
Ribeiro; O preço "invisível" da tecnologia importada, do jornalista Aloysio Biondi.
Além disso, também neste primeiro número, o artigo “Concentrador de
teclados: zero erro”, do engenheiro Diocleciano Arthur F. Pegado, descreveu outro
exemplo de produção local de um artefato de substituição de tecnologia estrangeira
já instalada no país a partir da própria tecnologia estrangeira. Tratava-se de um
concentrador de teclados, já desenvolvido e instalado no SERPRO, que recebeu
esse nome por sua capacidade de reduzir o custo de equipamentos em sistemas de
entrada de dados, mantendo a garantia de fidelidade das informações. O
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desenvolvimento do concentrador de teclados envolveu o projeto de uma interface
ligando até 32 teclados a uma única CPU (unidade central de processamento) e o
desenvolvimento do software para gerenciar as informações de todos os teclados na
mesma CPU. Comparado às soluções oferecidas na época pelas multinacionais,
uma CPU para cada teclado, o novo sistema representou uma redução drástica de
custos, pois na prática substituiu 32 CPUs caras por 32 teclados de baixo custo
usando apenas uma única CPU. Vale ressaltar ainda que no Brasil a relação do
custo do equipamento em relação a outros custos, como salários ou aluguel, é muito
maior do que a mesma relação para empresas nos EUA ou na Europa.
O design e a produção deste concentrador pelos engenheiros do SERPRO,
descritos nas páginas do periódico, visibilizaram para um público maior uma ponte
entre um produto estrangeiro e um desenvolvimento local, ou seja, a tradução de
uma tecnologia alienígena para um habitat nacional (local) por meio do design de
uma interface (hardware e software) que conectava 32 teclados importados a uma
CPU importada. Até o final de 1975, o SERPRO havia instalado 75 concentradores
de teclados, totalizando 1168 teclados. Portanto, o problema referente ao custo e à
confiabilidade da entrada de dados foi repensado e reconceptualizado na "maior
transcrição de informações da América Latina ... para "[especificamente] considerar
as necessidades operacionais do SERPRO" (Pegado, 1975: 42-44).
Em 1975, o texto “O software nacional em busca de sua alma”, de Newton
Faller, engenheiro pesquisador do NCE/UFRJ, abre o número 6 da revista
DADOS&Idéias, em seu segundo ano. O artigo é outro exemplo típico do tipo de
propostas que se encontram na revista naquele momento. Reivindicando uma
indústria nacional de software, o autor definiu seu ponto de vista sobre a complexa
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interação sociotécnica implicada na feitura desse tipo de artefato. Para ele, o
software deveria encarnar a autonomia tecnológica nacional.
É instrutivo citar Faller longamente, pois ele mostra o caráter múltiplo de um
produto industrial, a união de partes heterogêneas no mesmo processo, design local
e produção local:
Duas substâncias básicas são encontradas em um produto industrializado. A
primeira, visível e palpável, é de natureza física, formada pelas várias partes
materiais que o compõem. A segunda é sutil por natureza, uma espécie de
alma que o produto possui. É a inter-relação que surge entre suas várias
partes na formação de um todo. É a compreensão dessa alma que dita os
procedimentos necessários para obtê-la a partir de elementos mais simples.
Quanto mais complexa a alma do produto, mais provável é que maior seja o
know-how necessário para obtê-la. Diz-se, neste caso, que aumenta o
conteúdo tecnológico do produto industrializado. Esse know-how, no entanto,
não está contido nos livros didáticos e é impossível passá-lo para aqueles
que não estão devidamente preparados para recebê-lo. A experiência tem
mostrado que só há uma maneira de explorar a alma de um produto e, assim,
de tornar possível gerar ou absorver know-how; e é projetá-lo e construí-lo.
(...) É preciso entender bem que a autonomia tecnológica para um produto só
pode ser alcançada se houver conhecimento da alma do produto no país.
Esse objetivo, no entanto, só pode ser viabilizado quando houver total apoio
ao projeto, industrialização e comercialização de produtos cujo corpo e alma
são conhecidos no país, diferenciando-os daqueles produtos de um corpo
nacional cujas almas são dominadas apenas por estrangeiros (Faller, 1976:5).
Para o autor, esse projeto de atingir a alma do computador brasileiro poderia ser
plenamente realizado no país naquele momento:
20
Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
Pelo que se tem observado ultimamente, pelo que já foi feito em empresas e
universidades brasileiras isoladas, essas pessoas, apesar do pequeno
número, são suficientes para dar início ao empreendimento. Para essa
comunidade, desde que haja viabilidade técnica, a criação de uma indústria
nacional de software se torna um problema político (Faller, 1976:5).
Em resumo, para aquela comunidade de profissionais de computação brasileiros,
havia a possibilidade e a capacidade de construir uma indústria baseada em
hardware e software de computadores projetados localmente. Os designs locais
propostos partiam do ambiente local, ou seja, de um conjunto de situações locais
que condicionavam todas as atividades envolvidas no desenvolvimento dos
artefatos, desde recursos humanos disponíveis até infraestruturas laboratoriais,
recursos financeiros etc. além de necessidades ou problemas locais. Foi desses
ambientes locais que surgiram projetos como o concentrador de teclado acima
descrito, a unidade de ponto flutuante IBM 1130, o compilador COPPEFOR e outros
projetos, como a interconexão entre equipamentos de diferentes fabricantes
multinacionais.13 Todo esse conjunto de condições locais personifica a alma do
artefato. Para a “comunidade de informática”, o futuro era uma informática baseada
em sistemas (máquinas e programas) que tivessem alma brasileira.
13Um projeto para interligar equipamentos (especialmente terminais) de diferentes fabricantes
multinacionais foi desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Isso aumentaria o
poder de barganha dos usuários porque eles poderiam comprar, por exemplo, o computador de um
fabricante e os terminais de outro.
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
A origem da tecnologia como problema: uma nova visão do
futuro
O caráter inovador dos artigos de DADOS&Idéias era propor uma política industrial
oficial (governamental) que colocasse a origem da tecnologia como um problema em
primeiro plano. Os artigos de DADOS&Idéias argumentavam que até então no Brasil
a questão da tecnologia industrial havia sido consistentemente resolvida a priori,
uma vez que a origem da tecnologia não era problematizada nos planos de
desenvolvimento brasileiros. Grandes empresas internacionais, incentivadas pelos
governos brasileiros a se estabelecer e/ou expandir suas atividades industriais no
país, usavam suas próprias tecnologias, projetadas e desenvolvidas em seus
respectivos países de origem, para instalar e operar suas fábricas no Brasil. Isso
explicava por que os produtos industriais fabricados no Brasil sempre foram
projetados e desenvolvidos no exterior.
A “comunidade de informática” enxergava a origem da tecnologia como uma
questão crucial no Brasil na década de 1970. Seguindo a tradição colonial, o Brasil
foi industrializado com tecnologia importada. Para a “comunidade de informática”,
isso trazia desvantagens consideráveis ao país. A produção industrial do Brasil, se
avaliada em termos da quantidade final de produtos industriais (carros, produtos
metalúrgicos, televisores, computadores, produtos farmacêuticos, plásticos etc.) era
comparável à da França ou da Inglaterra. Mas, além de exigir um pagamento
crescente de royalties, a tecnologia estrangeira não trazia para o Brasil, os
empregos qualificados que estavam em ascensão na cadeia de produção. A adoção
indiscriminada de tecnologia estrangeira teve, portanto, um efeito econômico
negativo na capacidade do Brasil de acumular capital e desenvolver uma classe
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
média industrial de altos salários. Artigos na DADOS&Idéias reivindicavam a
capacidade de intervir, complicar as coisas, interferir na tradição colonial, neste caso
questionar a adoção indiscutível de tecnologia estrangeira. O uso de tecnologia
estrangeira também explicaria a ausência de marcas brasileiras, uma vez que as
marcas estão associadas ao controle do processo tecnológico. A posse de marcas
próprias é condição de acesso aos mercados internacionais. Segundo as
abordagens de DADOS&Idéias, a tecnologia importada explicava o fato de que até
então o Brasil, entre os países de economias de grande porte, era o único que não
detinha marcas próprias de produtos intensivos em tecnologia.14
Para expor perspectivas de narrativas possíveis da história da informática no
Brasil, trazemos a visão de futuro configurada na comunidade de informática
naquele período. Naquele panorama, ecoando Reinhart Koselleck, podemos sugerir
que as "profecias desenvolvimentistas" dos cientistas da computação brasileiros
foram "arruinadas" pelas ameaças das "traiçoeiras coletividades abertas" que a
própria comunidade de informática, especialmente os barbudinhos, poderia
representar (Koselleck, 2004:25). A comunidade de informática teria ultrapassado os
limites do que os subalternos à ditadura militar poderiam falar. Embora os autores de
Dados&Idéias apresentassem suas sugestões ao governo ditatorial como "ideias
técnicas", a indissociabilidade do "técnico" e do "político" não deixou de ser
percebida. Essa percepção tinha o potencial de dividir o núcleo duro da ditadura
14Essa é uma situação que se mantém até hoje. Por exemplo, exceto por experimentos de escala
minúscula, os automóveis fabricados no Brasil são concebidos e desenvolvidos no exterior.
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
entre, por assim dizer, progressistas relutantes e geralmente pouco ousados de um
lado, e conservadores reacionários acomodados do outro.15
Podemos chamar de “profecias desenvolvimentistas” as visões de um futuro
da comunidade brasileira de informática que se aliou às universidades e aos data
centers estatais, mesmo admitindo que não poderia rejeitar uma aliança com os
militares. As propostas discutidas nos artigos de DADOS&Idéias foram incorporadas
em parte pelo governo militar, cujo propósito era tornar as visões de futuro propostas
pela comunidade de informática uma parte integral, ainda que domesticada, do
aparato do Estado. Ou seja, um Brasil desenvolvido, proposto pela visão dos
barbudinhos projetada no futuro, só seria um fator de coesão na medida em que
realizasse um projeto desenvolvimentista de poder econômico e tecnológico
(moderno) por meio dos órgãos reguladores criados pelo governo militar. Uma
característica dos órgãos reguladores das ditaduras absolutistas é a mudança
operacional repentina de leis e regras. Se os barbudinhos não estivessem mais lá,
como veremos, suas profecias desenvolvimentistas, como sua visão projetada para
um futuro, não resistiriam às “provas de força” e entrariam em processo de
desmanche.
15 O ministro da Fazenda de Ernesto Geisel, Mário Henrique Simonsen, conhecido por sua adesão ao
credo liberal em economia, estava na reunião do governo em que se discutiu o estabelecimento de
uma reserva de mercado para os sistemas de minicomputadores brasileiros como a única maneira de
continuar e colher os resultados dos investimentos já feitos em tecnologia de computadores. Ele não
estava totalmente convencido, mas no final disse "deixa os meninos tentarem", referindo-se aos
barbudinhos.
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
Frente à farta documentação da repressão da ditadura, no entanto, é forçoso
reconhecer como muito plausível que uma aproximação entre a política de
informática, tal como a proposta de DADOS&Idéias, focada no desenvolvimento
tecnológico stricto sensu, e as organizações de trabalhadores correlatas, aumentaria
a desconfiança em relação aos barbudinhos, tanto por parte do governo ditatorial
como provavelmente também por parte dos empresários.
“Dependência tecnológica”: um conceito múltiplo
Os artigos de DADOS&Idéias destacaram três situações consideradas insatisfatórias
para três coletivos diferentes ligados à comunidade brasileira de tecnologia da
informação, a saber, professores universitários, funcionários da burocracia estatal e
militares, especialmente os quadros técnicos das forças armadas. Os autores e
leitores de DADOS&Idéias provinham na sua maioria dos dois primeiros coletivos
acima. Mas os técnicos militares compartilhavam com eles uma insatisfação
profissional relacionada a uma falta comum de domínio local da tecnologia da
computação. Os quadros técnicos militares, principalmente da Marinha, percebiam
que os engenheiros militares brasileiros não sabiam e/ou não tinham meios para
manter os computadores de bordo das fragatas recentemente adquiridas pela
Marinha do Brasil da Inglaterra, e traduziam essa vulnerabilidade militar como
"dependência tecnológica".
Gestores dos centros de processamento de dados, especialmente do
SERPRO, PRODESP, PRODENGE e PROCERGS, mostraram que, se tivessem ou
pudessem contratar equipes de profissionais brasileiros que soubessem projetar
hardware e software de interfaces e pequenos dispositivos, então, em muitos casos,
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
teriam mais oportunidades de implementar soluções igualmente eficazes e mais
baratas do que aquelas oferecidas pelos sistemas (hardware e software)
comercializados pelas multinacionais, projetados (designed) para as condições
prevalecentes em outros países. Eles também traduziram essa condição como
"dependência tecnológica".
Finalmente, professores universitários, especialmente em escolas de pós-
graduação, argumentaram que o Brasil não tinha uma indústria que transformasse
os protótipos que eles desenvolveram – na verdade, os protótipos junto com a
respectiva documentação e alunos treinados – em produtos industriais, ou seja,
artefatos usados na sociedade em geral. Eles também alegaram que sem uma
indústria baseada em tecnologia local não haveria empregos para os alunos a quem
eles consideravam importante ensinar o design de artefatos de computação
(hardware e software). Além disso, eles temiam que sem tal realização pela indústria
seria muito difícil justificar e manter os recursos crescentes que suas pesquisas
demandavam. Os professores universitários defenderam a construção de uma
indústria de computadores baseada na engenharia brasileira para superar o que eles
também chamavam de "dependência tecnológica" do país.
A tradução dos três objetivos diferentes em um só, o de superar a
“dependência tecnológica”, reuniu os três tipos diferentes de profissionais acima,
dando consistência e unidade ao coletivo intervencionista que inoculou na primeira
fase da política nacional informática a visão de um futuro do Brasil como um país
“tecnologicamente independente”. Conferências de sociedades profissionais
relacionadas ao setor de informática, como SECOMU (universidades), SECOP
(empresas estatais de processamento de dados) e SUCESU (empresas privadas
usuárias) também participaram desse processo de discussão da busca pela
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
“autonomia tecnológica”.16 As discussões alcançaram também as edições locais do
ComputerWorld, chamada DATANEWS (Vianna, 2015).
Um personagem semiótico17
Até o final da década de 1970, apenas grandes empresas multinacionais montavam
computadores ou máquinas de processamento de dados no Brasil: IBM, Burroughs e
Olivetti. Naquela época, não havia empreendedores brasileiros no ramo de
fabricação ou montagem de computadores. Tal personagem não estava presente
entre os atores (técnico-político-econômico-culturais) do cenário brasileiro da época.
No entanto, na visão predominante na comunidade da informática, para que uma
busca ativa por "independência tecnológica" tivesse alguma chance de sucesso em
seu objetivo de promover uma indústria genuinamente brasileira de
minicomputadores, essa lacuna, ou seja, a ausência de fabricantes brasileiros de
16 Os SECOMU - Seminários de Computação em Universidades – são hoje, bastante transformados,
realizados como um eixo temático no âmbito dos congressos anuais da Sociedade Brasileira de
Computação (S.B.C.) (ver https://csbc.sbc.org.br/2024/secomu/ ) e os SECOP (originalmente
Seminário de Coordenação em Processamento de Dados, o primeiro deles realizado em 1973 em
Fortaleza/CE) são realizados até hoje, embora sua designação tenha sido mudada para Seminário
Nacional de TIC para a Gestão Pública. Ver https://secop.org.br/ .
17 Bruno Latour observa que recorrer ao que ele chama de uma personagem semiótica é uma prática
comum na escrita de artigos científicos. “É um truque comum a toda retórica, seja ela científica ou
não. ‘Eu sabia que você faria essa objeção, mas já pensei nisso e aqui está minha resposta’. O leitor
é não só escolhido de antemão, como também lhe tiram as palavras da boca ... (Não é tratado como
pessoa de carne e osso, mas como pessoa no texto, um personagem semiótico) (Latour, 1987/1997:
88-89) Para uma apresentação geral, ver Callon, M., J. Law and A. Rip (1986), Mapping the
Dynamics of Science and Technology, Londres, MacMillan Press Ltd.
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
computadores, precisava ser preenchida. Um empresário-fabricante brasileiro de
minicomputadores foi criado como uma espécie de personagem semiótico no
espaço de autoria da democracia relativa. E os artigos publicados em
DADOS&Idéias que o criaram dialogaram com este personagem semiótico: um
empreendedor local interessado em investir e ganhar dinheiro contratando
profissionais brasileiros para desenvolver uma tecnologia computacional local
(design).
A visão que foi assumida em DADOS&Idéias é que os chamados arcabouços
de "livre mercado" não levariam ao nascimento desse personagem semiótico, um
tipo de o empreendedor até então inexistente. E, para a comunidade da informática,
sem design local, o Brasil enfrentaria mais dificuldades para superar a "dependência
tecnológica". Sem sua própria capacidade de projetar, montar e comercializar sua
própria informática, o Brasil continuaria sendo um país que não tinha suas próprias
opções em computação. O Brasil seria sempre dependente da tecnologia que os
engenheiros brasileiros não soubessem produzir e, portanto, seria forçado a pagar
pela tecnologia importada os preços que os donos estrangeiros da tecnologia
fixassem para ela.
Os pesquisadores argumentavam que a continuidade dos projetos de
protótipos realizados em universidades e centros de processamento de dados
estatais demandava recursos muito maiores do que os até então investidos e,
portanto, o Estado brasileiro sozinho não teria condições de fazer frente aos
investimentos necessários. Ganhou força a ideia de que era preciso criar o
empreendedor privado local interessado em investir e ganhar dinheiro
desenvolvendo tecnologia computacional no Brasil. Como não havia esse tipo de
empreendedor as discussões e os diálogos que vieram a defini-lo e constituí-lo
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
foram travados com um personagem imaginado, uma idealização ainda não
realizada, que denominamos um personagem semiótico.
Temos aqui um caso em que os barbudinhos configuravam uma ideia de
futuro para o Brasil: um país com empreendedores nativos engajados na fabricação
de minicomputadores. As discussões e diálogos em DADOS&Idéias antecederam a
existência desse empreendedor e contribuíam para seu surgimento ao desenhar
quem ele seria. Em DADOS&Idéias, esse interlocutor imaginado era o
empreendedor privado brasileiro que seria um fabricante de minicomputadores. Esse
personagem só se configurou mais tarde como um ator em carne e osso. Assim,
pode-se dizer que o "empreendedor privado local" existiu como um personagem
semiótico antes de sua existência em pessoa como ator sócio-técnico-econômico-
político. No teatro de ações dos anos 1970 no Brasil, o elenco incluía um ator ainda
inexistente em pessoa, a quem a comunidade da informática reservara um papel
heroico, o de salvador da pátria, função ou papel mais honroso do que o papel que,
nas culturas brasileiras, era (e ainda é) usualmente atribuído aos empreendedores
empresariais. A missão atribuída a esse personagem semiótico não era para ser, ou
não deveria ser, redutível a ganhar dinheiro. E, segundo o julgamento predominante
naquela década, o nascimento, ainda que imperfeito, desse tipo ideal dependia de
uma proteção expedida pelo Estado brasileiro. Ou seja, a vindoura Política Nacional
de Informática veio acompanhada de uma ideia de futuro substanciada na
concepção de um personagem semiótico: o empresário brasileiro que seria um
fabricante privado de minicomputadores. E a comunidade da informática se
mobilizou para que o governo brasileiro assumisse o projeto de materializar esse
empreendedor como habitante de um parque industrial. Na composição de suas
“profecias de desenvolvimento”, a comunidade de praticantes da informática criou
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
um personagem semiótico naqueles anos embrionários da Política Nacional de
Informática, personagem a quem recorriam solicitando missão nobre. Lembrando
Isabelle Stengers, a comunidade brasileira de informática dos anos 1970 fez com
que seus participantes se destacassem não apenas como usuários que podem
participar da resolução de problemas como se espera de usuários comuns, mas
também como praticantes que participam da formulação de problemas. Aquela
comunidade de informática tinha uma perspectiva de intervenção.
Entre a “mão invisível” da Economia e a mão visível do
Estado
Em decorrência da crise do petróleo na década de 1970, o Brasil estabeleceu novos
controles rígidos sobre importações, especialmente para a indústria automobilística,
computadores e equipamentos de telecomunicações e aeronaves. A comunidade de
informática soube aproveitar essa oportunidade para introduzir a questão da
dependência tecnológica nos critérios de controle de importações para estabelecer
uma política industrial de proteção ao design local. A CAPRE, mencionada acima,
encarregada de "racionalizar o uso de computadores dentro do governo federal",
teve suas atribuições ampliadas para também controlar caso a caso a importação de
computadores e componentes eletrônicos. De fato, isso deu à CAPRE a
oportunidade de promulgar uma política industrial para a indústria de computadores,
uma vez que não era possível fabricar computadores no Brasil sem importar
componentes eletrônicos. Com base nos argumentos da comunidade de informática,
em 15 de julho de 1976, a CAPRE publicou sua Resolução 01 determinando que a
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Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
política nacional para minicomputadores buscaria "a consolidação de um parque
industrial com total comando, controle da tecnologia e decisão no país".
Em 1977, uma competição internacional para selecionar empresas para
fabricar e vender sistemas de minicomputadores no Brasil seguiu a Resolução 01 da
CAPRE. Somente os vencedores teriam acesso ao mercado brasileiro de
minicomputadores porque a CAPRE concederia licenças de importação somente a
eles. Um critério anunciado na seleção dos candidatos foi o comprometimento com o
design, pesquisa e desenvolvimento local no plano de investimento dos candidatos.
O lançamento da competição internacional e a decisão sobre a escolha dos
vencedores foi um longo processo envolvendo um conflito com a IBM que desafiou a
Resolução 01 da CAPRE vendendo 400 unidades do IBM /32, claramente um
minicomputador, antes da decisão da CAPRE. Finalmente, três candidatos
brasileiros foram selecionados para competir entre si: Edisa, Labo e SID.18
Embora nesta competição inaugural nenhum candidato tenha apresentado
produtos baseados em protótipos universitários, foi em meio às ideias, argumentos e
recomendações da comunidade de informática que a CAPRE encontrou um artifício
– que passou a ser chamado de reserva de mercado de minicomputadores – que
18 Foram 15 empresas candidatas: sete estrangeiras (incluindo IBM e HP), sete brasileiras e uma joint
venture. Para relatos mais detalhados desta competição internacional, ver Dantas, V. (1988),
Guerrilha tecnológica : a verdadeira história da política nacional de informática, Rio de Janeiro, Livros
Técnicos e Científicos., Helena, S. (1977), "Minis: A decisão final e os trunfos de cada um",
DADOS&Ideias, 3, (2), pp. 34-45; Helena, S. (1980), "A indústria de computadores: a evolução das
decisões governamentais", Revista de Administração Pública, 14, (4), pp. 73-109., da Costa
Marques, I. (2003), "Minicomputadores brasileiros nos anos 1970: uma reserva de mercado
democrática em meio ao autoritarismo", História Ciências Saúde MANGUINHOS, 10, (2), pp. 657-
681.
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tornou a pesquisa, o design e o desenvolvimento local de minicomputadores mais
atraentes para os investidores privados brasileiros. Edisa, Labo e Sid foram
fundadas para entrar na competição internacional. Elas negociaram contratos de
licenciamento e compras de tecnologia estrangeira para iniciar suas atividades,
assim como a estatal Cobra, que já existia antes da competição, também havia feito.
Todas elas assumiram e cumpriram seu compromisso de formar equipes técnicas no
Brasil para atualizar os modelos licenciados e projetar novos modelos, tornando-se
já no início dos anos 80 independentes de suas fontes iniciais de tecnologia
estrangeira. As fontes iniciais de tecnologia foram Ferranti (inglesa) para Cobra,
Logabax (francesa) para Sid, Fujitsu (japonesa) para Edisa e Nixdorf (alemã) para
Labo.
A Tabela I ilustra a mobilização do capital privado brasileiro pelo crescimento
do número de aberturas de empresas no setor após a Resolução CAPRE 01. O
resultado da competição internacional inaugural e consolidou a regra de que
somente empresas de controle brasileiro comprometidas com o desenvolvimento
tecnológico local tinham acesso ao mercado de minicomputadores.
Marcas brasileiras de computadores e independência
tecnológica
De forma um tanto surpreendente, esse personagem semiótico delineado nos
artigos de DADOS&Idéias, essa ideia de empreendedor do futuro criada naquele
passado, criou corpo de carne e osso consolidou-se após a CAPRE reservar o
segmento de mercado de minicomputadores para iniciativas brasileiras. Na esteira
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dessa resolução, surgiu um conjunto de empresas brasileiras que atendeu a
demanda de um forte e vigoroso mercado de minicomputadores e seus periféricos
com equipamentos produzidos exclusivamente no Brasil, conforme indicam as
Tabelas II e III (Adler, 1986, 1987 y 1995, da Costa Marques, 2015, Evans et alli,
1992, Schoonmaker, 2002). A criação desse mercado e o domínio das tecnologias
de design e fabricação de minicomputadores passaram a ser reforçados por uma
variedade de materiais publicitários em apoio à reserva de mercado como espaço
econômico reservado a um negócio com a nobre missão de tornar o Brasil
tecnologicamente independente em informática. Essa publicidade revela o futuro
imaginado pela comunidade “técnica” intervencionista da informática nos anos 1970,
apoiando-se na preocupação com a origem da tecnologia como ponto de partida
para a independência tecnológica.
Figura 3. Revista Veja, 550, 21/03/1979
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A Figura 3 é um anúncio do fabricante privado de minicomputadores Edisa em
referência ao hino nacional brasileiro.
A Edisa faz uma conexão direta e firme com a retórica patriótica e triunfalista,
extraindo do hino nacional a inspiração para o título da propaganda de sua marca e
de seus equipamentos da série ED-300: "EDISA: esta marca brilhará no céu da
pátria". No texto, pode-se ler que, apesar de ter iniciado seu projeto absorvendo
tecnologia japonesa da Fujitsu, a empresa "está investindo seriamente em homens e
máquinas para desenvolver um modelo brasileiro de hardware e software". Para
finalizar, a Edisa celebra na última frase a reafirmação da autonomia: "E todos
teremos dado um passo importante em direção à nossa verdadeira independência
tecnológica". Assim, esse tipo de propaganda busca ultrapassar as fronteiras do
sujeito empresarial, um "nós" subconsciente como povo brasileiro, que emerge do
texto como o maior beneficiário desse esforço por autonomia tecnológica, para além
da competição de mercado ou da ganância pelo lucro. Segundo esse tipo de
publicidade e sua ligação com o hino nacional, o que está em jogo é uma pátria
libertada, pois é o sol da liberdade que, em raios fúlgidos, brilha no céu da pátria.
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Figura 4 Quadro "Independência ou Morte!", 1888, de Pedro Américo, Museu
do Ipiranga, em São Paulo.
Fonte: Américo, P. (1888), "Independência ou Morte!", São Paulo, Museu do Ipiranga
Aqui temos na Figura 4 a famosa pintura de Pedro Américo, símbolo da
Independência do Brasil. E na Figura 5 um anúncio da fabricante privada de
minicomputadores SID, destacando-se do centro da pintura e ampliando a figura de
D. Pedro I, o primeiro imperador do Brasil, desembainhando sua espada no grito de
"Independência ou Morte". A chamada do anúncio diz: “Na computação, um dia
teremos que andar sozinhos. A[empresa] SID está preparada para esse dia.”
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Figura 5 - Veja, 608, 30/04/1980
Figura 6. Revista Veja, 635, 11/05/1980)
O texto abaixo detalha a chamada do um anúncio da fabricante estatal de
minicomputadores Cobra na Figura 6:
"Projetado, desenvolvido e produzido por técnicos brasileiros que trabalham em uma
empresa totalmente nacional, o Cobra 530 não deve nada aos seus congêneres
estrangeiros. E o que é melhor, sendo feito por nós, ele é muito mais adequado às
necessidades de processamento do nosso país. (...) Como brasileiro, você tem muitos
motivos para se orgulhar do Cobra 530 (...) ele representa a consolidação da nossa
própria tecnologia independente. É a prova de que, também no campo da informática,
estamos superando os desafios" (Revista Veja, 1980)
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Figura 7. Revista Veja, 641, 17/12/1980.
O texto da Figura 7, um anúncio da fabricante estatal de minicomputadores Cobra,
vincula a tecnologia à segurança nacional e à independência do Brasil:
Computador é como petróleo: é perigoso depender dos outros – … um país
que quer ser grande e forte deve desenvolver sua própria tecnologia de
computadores. O Cobra 530 é o primeiro computador verdadeiramente nacional
capaz de resolver rapidamente qualquer problema de processamento de dados. (...)
O Cobra 530 é a resposta da Cobra à reserva de mercado. É o desenvolvimento e a
fixação da tecnologia em um setor onde não há meio termo: independência ou
morte.
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Figura 8. Revista Veja, 778, 03/08/1983.
A Figura 8 diz que o Cobra 540 foi projetado aqui para resolver problemas daqui,
então ele merece ser chamado de “O computador do Brasil". O anúncio insiste em
uma relação direta entre desenvolvimento local e problemas locais. Assim, planejar
para "resolver problemas daqui" garantiria a superioridade da solução brasileira. A
conclusão segue "obviamente", ou seja, que um computador desenvolvido no Brasil
por brasileiros, um "computador do Brasil", seria o melhor para o Brasil.
Entre muitos, dois desafios
DADOS&Idéas ocupou com sucesso o "espaço para autoria" aberto na "democracia
relativa" da ditadura brasileira. Enfrentou pelo menos dois desafios, ambos
relacionados às dificuldades de estabelecer colaboração entre diferentes culturas,
noções ou modos de existência.
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Muitos professores universitários tinham razões de sobra para serem
extremamente refratários a uma reaproximação com os militares no período
ditatorial. Isso limitou e tornou menos frutífera uma interação potencial na qual os
acadêmicos poderiam ter demonstrado que seu conhecimento poderia ser usado
para resolver problemas de interesse dos militares. Além disso, é claro,
pesquisadores acadêmicos locais poderiam influenciar e ser influenciados por
interesses militares locais. A recente criação de uma carreira respeitosa para a
equipe técnica das forças armadas facilitou a interação entre os dois grupos.19 No
entanto, esse desafio à interação frutífera pôde ser enfrentado com sucesso apenas
por um tempo relativamente curto, como veremos.20
Quanto ao segundo desafio, em retrospectiva, fica mais fácil ver que muitos
acadêmicos brasileiros da década de 1970 acreditavam no que o senso comum e os
cientistas ainda acreditam, ou seja, que as questões que surgem no
desenvolvimento da ciência e da tecnologia são separáveis da cultura e da política.
19 No Brasil, talvez diferentemente de outros países, as trocas econômicas e de conhecimento entre
pesquisa militar e pesquisa acadêmica são muito raras. O projeto G-10, realizado na Universidade de
São Paulo (USP) e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/Rio) com interesse e
apoio político da Marinha do Brasil, foi uma exceção que confirma a regra. De fato, o projeto G-10 foi
um dos elementos na gênese da comunidade da informática. Mas o comandante Guaranys, que se
qualificou como um importante porta-voz dos militares na área da informática, morreu
prematuramente no início dos anos 1970. A letra "G" no nome de batismo do projeto que uniu as duas
universidades e militares é em sua homenagem.
20 Não vamos nos deter na questão dos militares, como qualquer outra categoria, não formarem um
bloco monolítico. Os obstáculos à comunicação foram recolocados de forma intimidatória quando
outros militares, os da polícia política da ditadura (Serviço Nacional de Informações – SNI) intervieram
na comunidade da informática e proibiram a publicação de DADOS&Idéias.
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O desafio era superar a convicção de que a melhor atitude para acadêmicos e
especialistas em computação seria permanecer em laboratórios fazendo "trabalho
científico ou técnico", supostamente universal e politicamente neutro, uma convicção
que em geral mantém acadêmicos e especialistas fora da política. Essa convicção
leva acadêmicos e especialistas brasileiros em engenharia, medicina e ciências
naturais a acreditar que a ausência de participação política não condena seu próprio
trabalho, e consequentemente eles próprios, a posições subalternas como atores e
atoras na construção do conhecimento. Em sua breve existência, ao contribuir para
a configuração e o nascimento de uma comunidade brasileira de informática que
exerceu um "papel técnico e politicamente ativo" na sociedade brasileira, a
DADOS&Idéias enfrentou com bastante sucesso esse segundo desafio de engajar e
trazer muitos especialistas e acadêmicos da computação para a arena política onde
diversas batalhas econômico-sociotécnicas foram travadas.
O encerramento da Revista DADOS&Idéias
Vale ressaltar que o sucesso inicial da Política Nacional de Informática brasileira de
reserva de mercado se deveu ao ethos democrático dos profissionais da
computação, especialmente os barbudinhos que, apesar de sua aparente coloração
“esquerdista”, fizeram uso da “democracia relativa” autoritária para ampliar o círculo
de profissionais interessados nas relações da tecnologia da computação e da
indústria local. Uma avaliação detalhada da postura democrática na criação da
Política Nacional de Informática, apresentada como uma política de reserva de
mercado em meio ao autoritarismo da ditadura, foi também feita em outros lugares.
(Helena 1980) (da Costa Marques 2003) (da Costa Marques 2015) Aqui nos
40
Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
concentramos no fim da DADOS&Idéias, resultante da repressão daquele ethos
democrático com a criação da SEI.
Em 1980, uma decisão interna entre os militares colocou o general João
Baptista Figueiredo no comando da ditadura brasileira. Antes, ele havia sido o chefe
do temido Serviço Nacional de Informações (SNI), ou seja, ele chefiava os “coronéis”
da polícia política. Imediatamente após a posse do general Figueiredo, esses
“coronéis” criaram uma comissão para investigar a “comunidade de informática”, um
nome que soou suspeito para os pouco esclarecidos “coronéis” que se
autodenominavam uma “comunidade de informação”. Uma comissão, nomeada em
homenagem ao seu chefe formal, o embaixador Paulo Cotrim, na época o
“informante” do SNI no Ministério das Relações Exteriores, foi formada para atacar a
“comunidade de informática”.21
Montados na Comissão Cotrim, os coronéis do SNI convocaram dezenas de
participantes da “comunidade de informática” para interrogatório e grampearam suas
linhas telefônicas alegando que eram comunistas. (Helena 1980) (Dantas 1988)
Os coronéis do SNI fizeram uma intervenção autoritária arbitrária e se
tornaram os administradores da Política Nacional de Informática. Eles
imediatamente suspenderam a publicação de DADOS&Idéias. As mudanças no
comando da ditadura também incluíram mudanças no SERPRO. Assim que se
tornou o novo chefe do SERPRO, José Dion de Melo Teles providenciou a venda da
revista DADOS&Idéias para o jornal privado Gazeta Mercantil. Uma vez privatizada,
DADOS&Idéias foi reeditada seis meses depois. A mistura de questões técnicas e
21 “Informante” não era um posto oficial da ditadura. Muitos deles eram funcionários que escondiam
essa função, outros eram agentes infiltrados para dar informações à polícia política. De modo geral,
os informantes eram considerados traidores e apelidados de “dedo duro”.
41
Revista Redes 60 – ISSN 1851-7072
políticas, que havia sido a inovação e a pedra de toque da DADOS&Idéias como um
arauto de um novo futuro para a computação no Brasil, desapareceu. Nenhum dos
autores engajados da primeira fase do periódico voltou a escrever em sua nova
versão privatizada.
Ao chegarem com métodos ameaçadores num momento de garantias civis
ainda especialmente precárias no Brasil, em poucas semanas os "coronéis" do SNI
desmantelaram a “comunidade da informática”, uma construção sócio-técnica-
política frágil e vulnerável, como ela se mostrou. Em um relatório sigiloso, a
comissão Cotrim concluiu que o Brasil carecia de uma agência governamental de
nível ministerial para lidar com a informática. (Helena 1980) (Dantas 1988) Uma
nova agência governamental, a Secretaria Especial de Informática, SEI, foi
prontamente criada. Seus cargos também foram rapidamente ocupados pelos
membros da comissão Cotrim, coronéis Joubert Brízida de Oliveira, Edson Dytz e
Ezil Veiga da Rocha. Outros membros da comissão também lucraram com a
oportunidade, como seu chefe, o embaixador Cotrim, que foi nomeado presidente da
Digibrás, uma subsidiária do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social) especializada no setor de computadores, e Reis Loyola, que se
tornou presidente da fabricante estatal de computadores, Cobra.
A comissão Cotrim foi muito mais um meio de um bando de coronéis caçando
altos cargos na ditadura enfraquecida (num momento em que sua tarefa anterior de
caça aos comunistas estava chegando ao fim) do que um fortalecimento estratégico
na condução da Política Nacional de Informática, como alguns chegaram a ver. A
comunidade de informática, como uma inteligência descentralizada que se
aproveitava de um "espaço de autoria", havia sido uma espécie de bússola para
guiar a Política Nacional de Informática rumo a um futuro de independência
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tecnológica relativa no ambiente dos minicomputadores. Ainda que sem garantias de
sucesso, é plausível considerar que em breve esse tipo de inteligência
descentralizada teria se tornado ainda mais crucial para a orientação durante a
tempestade técnico-econômica-social pela qual a indústria de computadores ao
redor do mundo passou com o surgimento do microcomputador.22
Sem bússola?
Como se sabe, o computador eletrônico surgiu em meados do século XX como um
artefato custoso, pelo qual somente governos e, anos depois, somente grandes
corporações poderiam se interessar. Na década de 1970, o minicomputador já havia
aparecido. Mas um sistema de minicomputador, custando algumas dezenas de
milhares de dólares, ainda era um bem de capital típico, algo de interesse apenas de
empresas e não de indivíduos. O microcomputador, no entanto, foi o primeiro
computador a ter muitas características de um bem de consumo. Os procedimentos
de política industrial voltados para os minicomputadores, que haviam sido discutidos
em DADOS&Idéias e na “comunidade de informática” antes da intervenção do SNI,
tornaram-se inadequados. Seria necessário desenvolver novas regras regulando a
reserva de mercado para considerar a transição radical dos computadores de bens
de capital para bens de consumo. Ao desmantelar a comunidade de informática, os
"coronéis" do SNI jogaram fora uma ferramenta preciosa para discutir e entender a
complexidade do surgimento do microcomputador e as mudanças que ele estava
trazendo para a computação no Brasil. Sem bússola, não é de se espantar que a
Política Nacional de Informática de reserva de mercado então sob nova
22 Basta notar que os dois maiores fabricantes bilionários de minicomputadores, DEC (Digital
Equipment Corporation) e Data General, desapareceram nessa tempestade.
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administração da SEI tenha rapidamente afundado e a "independência tecnológica"
tenha se tornado um futuro do passado dos anos 1970 a meados dos anos 1980
entre os profissionais de informática brasileiros.
O Congresso Nacional foi extremamente lento na percepção das dimensões
que a informática poderia atingir e talvez nunca tenha dado ao assunto importância
primordial. É irônico que somente em 1984 o Congresso Nacional tenha aprovado a
“Lei de Informática” (Lei 7232/84), regulamentando a reserva de mercado, momento
em que o microcomputador se tornava um bem de consumo irresistível e os sinais
do abandono dos objetivos de independência tecnológica eram claros. Um futuro
promissor apontado em DADOS&Idéias continuou, no entanto, a ser previsto por
outros autores mesmo depois que a política de reserva de mercado foi arruinada.
O livro A Informática e a Nova República, editado por Cláudio Mammana, com
prefácio do Líder da Maioria da Câmara, Deputados Ulysses Guimarães, é na
verdade um conjunto de documentos oficiais referentes às discussões em torno da
política de informática no Congresso brasileiro de 1979 até a promulgação da Lei de
Informática em 29 de outubro de 1984. (Mammana 1985)
Um famoso opositor da polícia de reserva de mercado, radical porta-voz da
ideologia do chamado novo liberalismo, foi o senador Roberto Campos. Ele foi um
crítico feroz do que chamou de "intervencionismo estatal" dos "nacionalistas
tecnológicos". A eles Roberto Campos contrapôs um discurso de suposto caráter
liberalizante, citando países que haviam adotado abordagens diferentes em relação
ao surgimento da informática. Segundo Claudio Mammana, nas palavras de Roberto
Campos, "os países mais bem-sucedidos em informática foram aqueles que tiveram
pouca intervenção governamental. Existe hoje uma tendência libertária na Espanha,
Irlanda, Escócia, México, Argentina e Malásia." (Mammana, 1985: :59) Inconsistente
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até mesmo em sua época, Campos também mencionou aqueles países onde,
segundo ele, a indústria de computadores perdeu terreno, especificamente a
Inglaterra e os Estados Unidos, país que ... "ameaçou desindustrializar-se"
(Mammana 1985:60)
Em 1985, ano da publicação do livro, o projeto nacionalista da informática
iniciado no início dos anos 1970 já havia sido arruinado pela intervenção do SNI que,
como dito, resultou na substituição do pequeno órgão CAPRE (Comissão de
Coordenação das Atividades de Processamento Eletrônico) pela SEI (Secretaria
Especial de Informática), órgão elevado à categoria de ministério. O livro traz um
discurso da deputada Cristina Tavares em 1979, primeira discussão sobre a Política
Nacional de Informática na Câmara dos Deputados. Traz ainda outros discursos de
diferentes políticos ilustres como os senadores Marco Maciel, Severo Gomes, Carlos
Chiarelli e o ministro Renato Archer, e depoimentos de empresários e políticos
influentes como Olavo Setubal, Franco Montoro e João Sayad, além de um
documento do grupo denominado Movimento Brasil-Informática.
O texto principal do livro é o capítulo 1. Ele reproduz o discurso do então
candidato à presidência da República, Tancredo Neves, em 10 de setembro de
1984, na Comissão Mista do Congresso Nacional, abordando o que seria a Lei de
Informática. Em sua resposta a Roberto Campos, Tancredo Neves defendeu a
intervenção pública na informática, com um argumento que considerava o aumento
do número de fabricantes de computadores no Brasil e uma melhora na balança
comercial, indicando também expectativas de que a área teria um papel importante
na economia brasileira. Em seu discurso, prevendo um futuro de pleno
desenvolvimento, Tancredo disse:
45
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Parece que o nobre Senador e meu caro amigo está sendo injusto. A SEI, apesar
de todas as suas limitações e de todas as críticas que fazemos, foi da maior
importância, da maior significação para o que temos hoje de informática. À SEI nós
realmente devemos as 140 empresas de informática que temos hoje no Brasil, que
estão se conduzindo segundo os mais eficientes padrões de técnica e capacidade
funcional. Hoje, nós realmente contamos com essas 140 empresas, com um
número considerável de empregos, e mais do que isso, com técnicos altamente
qualificados, não só de nível médio, mas sobretudo de nível superior. Temos nossas
importações substancialmente reduzidas, e já estamos, na opinião dos técnicos,
praticamente habilitados para exportar. Negar, portanto, a intervenção do poder
público em favor da informática no Brasil, parece-me negar as evidências, negar os
fatos, negar as estatísticas e negar os números (Mammana 1985:66)
Ulysses Guimarães também reiterou a perspectiva de vincular a computação
ao futuro quando disse na introdução do livro:
Após longos anos de ditadura dos tecnocratas, o Congresso Nacional discutia e
estabelecia uma política industrial e tecnológica de vital importância para o futuro do
Brasil... Será nosso o desafio de conciliar a aceleração do progresso material com a
distribuição equitativa de seus frutos; de conciliar a necessária automação do
trabalho com a criação de novas oportunidades de emprego e a redução da jornada
de trabalho (Mammana 1985:14)
É notável que as palavras de Ulises Guimarães tragam à tona a esperança de
que no futuro, uma vez terminada a ditadura, uma nova organização sócio-técnico-
política em um Brasil liberto alcançaria uma mudança no próprio ethos do
desenvolvimento da informática, tornando-a mais afinada com as necessidades do
povo comum. O que é possível destacar aqui é como essas duas linhas
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rearranjaram as propostas dos "nacionalistas tecnológicos". Uma primeira linha, pelo
esforço de "retrabalhar o mais breve possível" as possibilidades do futuro. (Koselleck
2004:56) Reconsideram- se as questões tecnológicas da informática ao público, ao
povo e ao emprego, para inaugurar o futuro do que viria a ser chamado de Nova
República. O novo ponto de partida seria o de meados da década de 1980, quando
minicomputadores comercializados com marcas brasileiras por empresas brasileiras
com capacidades locais de design abasteciam cerca de metade do mercado
brasileiro de computadores, como indicam as Tabelas I e II. É como se o futuro do
passado, focado no design e na fabricação locais que haviam trazido esse tipo de
ocupação do mercado, se tornasse parte de um passado acontrecido.
Uma segunda linha, sob a perspectiva de que o passado não conseguiu
acrescentar nada ao futuro do país e que o próprio futuro era agora esperança, uma
"antecipação subjetiva de um futuro desejado" (Koselleck 2004:58) Essa
antecipação se dissolverá, assim como dissolverá a política de reserva de mercado
sancionada em 1984 pela Lei de Informática, numa época em que o
microcomputador já havia dissolvido as regras de uma reserva de mercado
projetada para o mercado de minicomputadores. A Lei de Informática foi fechada
sob aplausos na esteira da abertura econômica promovida pelo presidente Collor de
Mello em 1992. (Cukierman 2013) Aqui prevaleceu a proposta liberal de
desenvolvimento econômico a partir de um chamado livre mercado, não a projeção
de um futuro de independência tecnológica que a política de reserva de mercado
havia planejado para o país.
(In)conclusões e exercícios narrativos
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Ainda que seja um movimento arriscado, a articulação de narrativas sobre a política
de reserva de mercado de minicomputadores e a busca de uma alma para o
computador brasileiro levanta questões importantes apontadas por Isabelle Stengers
na abertura deste texto. Essa articulação destacou idealizações de futuro
concebidas por coletivos específicos e, logo depois, o papel emancipatório atribuído
a esses coletivos específicos ao estabelecer vínculos entre a informática e garantias
de soberania nacional quanto à produção local de artefatos computacionais digitais,
ainda que em tempos e contextos distintos, como indicado na introdução.
Essa articulação, porém, não pode supor que as intenções inscritas em
artigos, declarações, leis, decretos e diretrizes possam, por si mesmas, dar uma
forma final às redes sociotécnicas em cada período; como se a realidade existisse
como “objeto” independentemente de nós, como se fosse definida, singular e
independente da ação de tentar apreendê-la. A abordagem na perspectiva da Teoria
Ator-Rede não nos deixa ignorar que a política de reserva de mercado logrou
estabilizar-se como uma narrativa robusta em meio a uma complexa rede em que se
justapuseram e enredaram-se provisionalmente, além do “coletivo intervencionista
técnico politicamente engajado” destacado acima, outros múltiplos elementos muito
heterogêneos, fora do âmbito mais próximo daquele coletivo e em escalas
incomparáveis, tais como: o aparecimento da série TTL (os primeiros “chips”); a crise
do petróleo e consequente controle de importações; a veleidade (discurso militar) de
“Brasil potência” na ditadura; o mercado OEM nos Estados Unidos ; a resistência da
IBM (Sistema ∕32) e muitos outros apontados nas diversas histórias escritas sobre a
informática no Brasil.
Dissolvido com brutalidade autoritária o coletivo intervencionista que inoculou
a primeira fase da política nacional informática, a visão de um futuro do Brasil como
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um país “tecnologicamente independente”, foi afastada. A busca de uma alma ou
visão de futuro do coletivo intervencionista foi encerrada em um presente de onde
partir para um novo futuro.
Positivamente, não se pode esperar mais do que narrativas robustas. As
realidades encenadas por narrativas robustas resistem aos testes de força. E é por
meio de narrativas robustas que construímos o mundo em que queremos viver.
Os discursos de Tancredo Neves e Ulises Guimarães rearranjaram as
propostas dos barbudinhos em DADOS&Idéias ao recorrerem retoricamente a duas
antecipações. A retórica que adotaram foi a de atualizar o presente como o futuro
imaginado do passado. Ao fazê-lo, identificaram erroneamente uma aproximação
com uma chegada. E essa chegada foi tomada como um novo ponto de partida para
o futuro, abandonando o passado. Primeiro, pelo esforço de "retrabalhar o quanto
antes" as possibilidades do futuro, reunindo agora as questões tecnológicas da
informática, do público, do povo e do emprego, para inaugurar a Nova República. O
novo ponto de partida seria o presente, o de meados dos anos 1980, quando
minicomputadores comercializados com marcas brasileiras por empresas brasileiras
com capacidades de design local abasteciam cerca de metade do mercado brasileiro
de computadores. É como se o futuro do passado que se concentrava no design e
na fabricação locais que trouxeram essa situação bem-sucedida se tornasse o
tempo presente simples, e assim imediatamente parte do passado. E em segundo
lugar, é notável, se não indicativo de um lapso, que Ulises Guimarães fale sobre a
esperança de que no futuro, uma vez terminada a ditadura, novas organizações
sócio-técnico-políticas em um Brasil liberto alcançariam uma mudança na própria
alma de um desenvolvimento brasileiro da informática, tornando-a mais afinada com
as necessidades das pessoas comuns.
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O fato é que, por desinformação histórica ou, mais provavelmente, por cálculo
político, Tancredo Neves e Ulisses Guimarães deixaram de fora dois pontos cruciais.
Em relação à política de reserva de mercado de computadores, eles eram, como a
maioria dos políticos, retardatários reagindo ao presente, quando o fim da ditadura
estava, naquele exato momento, em processo de negociação com os militares. Além
disso, eles estavam competindo para ser um presidente palatável para os militares
que estavam saindo, mas ainda tinham a palavra final. Primeiro, eles promulgaram
uma narrativa única e contínua das décadas de 1970 e 1980, ignorando a diferença
política radical entre a extinta CAPRE, apoiada pela “comunidade de Informática”, e
a SEI, rebento do autoritarismo da polícia política da ditadura. Além disso, eles não
reconheceram o que já era visível – o microcomputador mudaria radicalmente o
papel do computador, não apenas no mercado, mas na sociedade.
Ambos os pontos, cruciais, tirados da desinformação ou do cálculo político, se
esvaneceram, assim como já estava dissolvida a política de reserva de mercado ao
ser sancionada pela Lei de Informática em 1984, numa época em que o
microcomputador já havia dissolvido as regras de uma reserva de mercado
projetada para o mercado de minicomputadores. Foi a partir de 1984, com o
crescimento explosivo da demanda por microcomputadores, que os fabricantes
brasileiros abandonaram as metas de desenvolvimento de tecnologia local em favor
de formas mais rápidas de suprir o mercado. Essas formas incluíam a falsificação de
designs importados apresentados como brasileiros acompanhados do contrabando
de peças para fabricação. O presidente Collor de Mello encerrou a Lei de Informática
sob aplausos gerais em 1990. (da Costa Marques 1990, da Costa Marques 1990),
(Cukierman 2013)
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Tabela I. Número de empresas fundada no ano
Ano Número de empresas
fundada no ano
Número total de empresas
fundada até o ano
antes de 1974
12
12
1
13
1975 1 14
5
19
1977 6 25
7
32
1979 8 40
7
47
8
55
1982 8 63
4
67
1984 4 71
Fonte: SEI. Bol. Inf.–SEI. Brasília, SEI, v. 6, n. 15 (ed. esp.), abril 1986, p. 18.
Tabela II. Valores porcentuais das receitas totais do mercado por tamanho dos
sistemas de computador em 1976
Muito grande
37,4%
Tempo bloqueado 6,1%
Grande
9,0%
Médio 17,6%
Pequeno
18,6%
Mini 11,3%
Fonte: Boletim Técnico da CAPRE, Jan/Mar 1979, p.38
Tabela III. Crescimento do recebimento da indústria brasileira de computadores
Ano
Empresas controladas no
Brasil
Empresas controladas por
estrangeiros
Total
(US$
bilhões)
Receita
(US$ bilhões)
(% do total)
Receita
(US$
bilhões)
(% do total)
0,2
23
0,6
77
0,8
1980 0,3 33 0,6 67 0,9
0,4
36
0,7
64
1.1
1982 0,6 40 0,9 60 1.5
0,7
47
0,8
53
1.5
1984 0,9 50 0,9 50 1.8
1.4
52
1.3
48
2.7
2.1
62
1.3
38
3.4
1987 2.4 60 1.6 40 4.0
2,9 / 2,8
67 / 54
1,5 / 2,4
33/46
4,4 / 5,2
1989 --- / 4.2 --- / 59 --- / 2.9 --- / 41 --- / 7.1
---
/ 3.8
---
/ 60
---
/ 2,5
---
/ 40
---
/ 6.3
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Artículo recibido el 23 de abril de 2025
Aprobado para su publicación el 15 de julio de 2025