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, VOL. 25, Nº 49, BERNAL, DICIEMBRE DE 2019, PP. 47-68
SOBRE O MARCO ANALÍTICO-CONCEITUAL
DA TECNOCIÊNCIA SOLIDÁRIA
Renato Dagnino*
RESUMO
Este texto apresenta o resultado de um propósito que persigo há mais de
quatro décadas, que tem como origem mais remota minha filiação ao
Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade funda-
do nos anos 1970, cujo objetivo é utilizar nosso potencial tecnocientífico
para superar o subdesenvolvimento, a dependência e a desigualdade.
Mais especificamente, o conceito que aqui proponho de tecnociência
solidária com a elemento central que traduz a metáfora de plataforma cog-
nitiva de lançamento da economia solidária.
A tecnociência solidária é a decorrência cognitiva da ação de um coleti-
vo de produtores sobre um processo de trabalho que, em função de um
contexto socioeconômico –que engendra a propriedade coletiva dos meios
de produção– e de um acordo social –que legitima o associativismo–, os
quais ensejam, no ambiente produtivo, um controle –autogestionário– e
uma cooperação –de tipo voluntário e participativo–, provoca uma modi-
ficação no produto gerado cujo resultado material pode ser apropriado
segundo a decisão do coletivo –empreendimento solidário.
Este desenvolvimento demandou uma crítica superadora do conceito
–de tecnologia social– utilizado no âmbito do movimento da economia
solidária. O que anima a iniciativa que faço neste texto é o fato de que, con-
traditoriamente, dado que esse movimento é politicamente contra-hege-
mônico, se tendem a legitimar no plano cognitivo dois mitos que dificultam
a inclusão social. O primeiro, é o da separação entre ciência e tecnologia.
O segundo, é o da neutralidade da tecnociência.
* Profesor Titular en el Departamento de Política Científica y Tecnológica de la
Universidad de Campinas. Correo electrónico: <rdagnino@ige.unicamp.br>.
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Para terminar, indico mais dois pontos: O primeiro, se refere à ideia de
que o conceito de tecnociência solidária, colocado em substituição ao de
tecnologia social, como derivado da especificação do conceito –genérico–
de tecnociência pode contribuir para evitar o maniqueísmo do conceito
usual de tecnologia social concebido por negação ao da tecnologia conven-
cional. O segundo, é que parece ingênua e inócua a postura daqueles que,
ao criticar a ideia de neutralidade da tecnociência capitalista, almejam uma
outra que, esta sim, seja neutra e verdadeira. E que, em consequência, pre-
tendem que os envolvidos com as atividades de pesquisa em instituições
públicas se esforcem –reativamente– para não permitir que elas sejam “con-
taminadas” com os interesses privados. A postura que aqui se propõe é, ao
contrário, francamente proativa.
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INTRODUÇÃO
Este texto apresenta o resultado de um propósito que persigo há mais de
quatro décadas, que tem como origem mais remota minha filiação ao
Pensamento Latino-americano em Ciência, Tecnologia e Sociedade funda-
do nos anos 1970 (Dagnino, Thomas e Davyt, 1996), cujo objetivo é uti-
lizar nosso potencial tecnocientífico para superar o subdesenvolvimento, a
dependência e a desigualdade.
Somou a esse propósito o desafio de conceber conhecimentos tecnocien-
tíficos para a produção de bens e serviços nos arranjos econômico-produ-
tivos que brotam no setor informal dos países latino-americanos para
enfrentar a exclusão social. Esse conjunto de redes de produção e consumo
baseadas na propriedade coletiva dos meios de produção e na autogestão
que busca expandir-se e adquirir sustentabilidade no âmbito de uma eco-
nomia capitalista periférica, e que passa a constituir a economia solidária,
se afigura como o embrião de uma efetiva inclusão social.
Este texto busca contribuir para a formulação de um marco analítico-
-conceitual para a concepção de uma plataforma cognitiva para alavancar
a economia solidária.
A história que conto ao longo do texto não é exatamente fiel ao que efe-
tivamente ocorreu; ela foi montada visando a tornar mais compreensível a
trajetória que levou a essa tentativa.
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CIÊNCIA, TECNOLOGIA, CONHECIMENTO PARA
A PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS, E TECNOCIÊNCIA
Devo aclarar desde logo, antes de começar a contar essa história, que meu
foco no tipo de conhecimento –o necessário para a produção de bens e ser-
viços– que resulta do objetivo que enunciei, me leva a considerar inconve-
niente a separação usualmente aceita entre ciência, de um lado, e tecnologia,
de outro. E, também, a ideia de senso comum apoiada nessa separação, de
que a tecnologia é aplicação da ciência –a verdade intrinsecamente boa que
avança, universal e neutra (no sentido de não contaminada por interesses e
valores)– para produzir mais, mais barato e melhor satisfazer as necessida-
des da sociedade; mas que, às vezes, devido ao uso da ciência já gerada por
interesses escusos, sem ética, a tecnologia pode causar o mal.
Para argumentar contra aquela separação, me ajudaram pesquisadores
contemporâneos que vão desde Bruno Latour (1987) a Jorge Núñez (1999).
Convencido de que ela já não corresponde à crescente imbricação que exis-
te entre a ciência e a tecnologia, e que os cortes locacional e temporal que
entendiam a primeira como realizada na universidade à procura da verdade
e não na empresa em busca do lucro, e para um futuro de contornos incer-
tos e não para sua aplicação imediata, coloquei o termo tecnociência no
foco de minha preocupação. Eu o entendia como mais aderente à realidade
observada e mais adequado para analisar a dinâmica global de inovação
motorizada pelas grandes corporações que envolvia, também, o ambiente
das instituições públicas de ensino e pesquisa.
Foi seguindo esse caminho, mas constatando que o termo tecnociência
que descrevia a realidade contemporânea deveria ser secundado pelo adje-
tivo capitalista, que passei a usá-lo para me referir, genericamente –para
qualquer tempo e sociedade–, ao conceito que me preocupava, o do conhe-
cimento para a produção de bens e serviços.
Minha interpretação do que havia lido sobre história da ciência e da tec-
nologia me levou à noção de que o conhecimento que o Homem usa para
a produção de bens e serviços sempre foi uma combinação do que hoje cha-
mamos de ciência, tecnologia, religião, crendices, resultado de tentativas e
erros ou da observação empírica, “instinto animal”, etc. E que sínteses simi-
lares ao conhecimento para a produção de bens e serviços atualmente exis-
tente –a tecnociência capitalista–, que é interpretado como uma fusão entre
ciência e tecnologia e considerado como uma característica do estágio de
desenvolvimento deste modo de produção, ou do neoliberalismo, sempre
existiram. E mais, que isso que é percebido como uma combinação de
conhecimentos –a ciência e a tecnologia– previamente codificados a partir
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das oportunidades abertas pela primeira foi algo que nasceu como uma uni-
dade tácita desde antes que fosse “inventado” o capitalismo, no âmbito de
processos de trabalho orientados a satisfazer os interesses de quem os con-
trola, de acordo com seus valores.
Mas, aproximando-me da realidade do capitalismo, onde os valores e
interesses da minoria que detém maior poder se encontram tão entranha-
dos na tecnociência que ele engendra, preocupava-me, por ser pouco plau-
sível, a ideia de uma separação e de uma precedência como propunha o
senso comum. E, com ela, a noção de que primeiro a ciência, sem valores
e interesses, seria gerada e, depois, a tecnologia, que a aplicava, seria colo-
cada a serviço do capital, como diria um crítico marxista. Como se o conhe-
cimento científico originalmente neutro fosse posteriormente
contaminado” mediante o desenvolvimento da tecnologia com os valores
e interesses capitalistas da propriedade privada e da exploração do trabalho
humano e, introduzida no processo de trabalho, possibilitasse a extração de
mais-valia relativa.
Para entender como é gerada a tecnociência capitalista, passei a refletir,
baseando-me em autores como Harry Braverman (1974) e Stephen Marglin
(1986), sobre como teria ocorrido a expropriação do conhecimento que
possuía o trabalhador na passagem do feudalismo para o capitalismo.
Entendi como a história da tecnociência capitalista se iniciava com a
expropriação do saber originário do trabalhador direto, e continuava com
o seu aperfeiçoamento que resultava da ação do proprietário dos meios de
produção sobre o processo de trabalho para ajustar a produção de bens e
serviços às demandas que derivavam da sua interação com os consumidores
e com os seus competidores. E que, quando necessário –por razões de cus-
to, escala, incerteza etc.– a experimentação controlada, a sistematização e a
codificação desse resultado cognitivo poderia ocorrer fora do ambiente da
produção, em espaços especializados, para voltar a ele com maior eficiência.
Percebi que se tendia a instaurar um círculo virtuoso que abarcava outros
territórios que não os da produção e do consumo, como o espaço univer-
sitário, pouco submetidos à lógica do capital.
Dessa forma, eu fui me convencendo de que a trajetória da tecnociência
capitalista nada tem a ver com “buscar a verdade” via o “avanço da ciência
ou, apoiando-se nela, produzir com “eficiência” bens e serviços melhores e
mais baratos mediante o desenvolvimento tecnológico. E que o surgimento
e expansão das organizações especializadas –públicas ou privadas– onde eu
me situava, orientadas ao ensino e à pesquisa, e a receber os filhos e afilha-
dos da classe proprietária, eram tão-somente uma faceta daquela
trajetória.
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Eu intuía, também, que ao postular um apartamento –ou subdivisão–
do conhecimento para a produção de bens e serviços –que em sociedades
pré-capitalistas englobava um amplo e variado conjunto– em ciência e em
tecnologia, o que se pretendia era uma manipulação ideológica. Mediante
isso naturalizou-se a ideia de que existia um binômio que expressava uma
imanente e latente contradição. Havia, de um lado, uma ciência, boa e ver-
dadeira, já que decorria de uma pulsão de um Homem infinitamente curio-
so por conhecer uma natureza perfeita. E, de outro, uma tecnologia que a
utilizava para a produção de bens e serviços, mas que, “sem ética” –isto é,
exorbitando a ética capitalista–, poderia ser orientada para o mal, como
asseverava o uso da física nuclear para matar pessoas em vez de para curar
o câncer. Pesa a favor desse argumento a proposição mais recente de que
existiria um terceiro tipo de conhecimento necessário para a produção de
bens e serviços. É assim que se adiciona ao binômio, já em pleno neolibe-
ralismo, o conceito de inovação para convencer-nos de que existia um con-
hecimento cuja geração só poderia ocorrer na empresa. E que ele deveria
ser, como efetivamente vem ocorrendo, o foco da política cognitiva do
Estado capitalista.
OS ESTUDOS SOCIAIS DA C&T E CONCEITO
DE TECNOCIÊNCIA SOLIDÁRIA
Dilucidado o conceito de tecnociência, posso voltar à minha história. Para
isso retomo minha intenção de formular um marco analítico-conceitual
para tratar as questões de natureza tecnocientífica associadas à economia
solidária. Ou, mais especificamente, com seu elemento central que traduz
a metáfora de plataforma cognitiva de lançamento da economia solidária:
o conceito que aqui proponho de tecnociência solidária. Essa intenção
demandou uma crítica superadora do conceito –de tecnologia social uti-
lizado no âmbito do movimento da economia solidária.
Esse conceito é expresso da seguinte forma: “considera-se tecnologia
social todo o produto, método, processo ou técnica, criado para solucionar
algum tipo de problema social e que atenda aos quesitos de simplicidade,
baixo custo, fácil aplicabilidade (e reaplicabilidade) e impacto social com-
provado” (Wikipedia).
Dado que conceitos que tratam de temas como a inclusão social impli-
cam e ao mesmo tempo denotam perspectivas distintas acerca da melhor
estratégia para lográ-la, é inevitável que eles sejam discutidos. O que anima
a iniciativa que faço neste texto é o fato de que, contraditoriamente, dado
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que esse movimento é politicamente contra-hegemônico, se tendem a legi-
timar no plano cognitivo dois mitos que dificultam a inclusão social. O
primeiro, que acabei de abordar, é o da separação entre ciência e tecnologia.
O segundo, para cujo questionamento foi fundamental minha incursão na
filosofia da tecnologia, é o da neutralidade da tecnociência.
Para fundamentar a crítica ao conceito de tecnologia social, que retomo
na quinta seção deste artigo, é conveniente seguir contando aquela
história.
Ela continua com a tentativa de idealizar um marco analítico-conceitual
que permitisse conceber aquela plataforma cognitiva da economia solidária;
o que me obrigou a alargar meu campo de visão sobre os Estudos Sociais
da Ciência e Tecnologia.
Com o objetivo de mostrar ao leitor como iniciei essa empreitada, cito
–em favor da brevidade sem indicar seus autores– algumas das contribui-
ções mais significativas.
A nova sociologia da ciência e seu programa forte de Edimburgo, e os
estudos sobre o laboratório”, aguçaram minha percepção de que a ciência
era uma construção social mutante e negociável. A abordagem da constru-
ção social da tecnologia ajudou-me a entender como “grupos sociais rele-
vantes” produziam o “fechamento”, no nível micro, de “artefatos
sociotécnicos” influenciados pelos seus valores e interesses quando era pos-
sível sua sintonia com os que atuavam no ambiente macro de um “tecido
sem costuras” em que operavam as grandes organizações; e como era pos-
sível, aumentando a intensidade dos sinais emitidos por novos grupos no
âmbito de processos de reprojetamento, alcançar meu propósito. A análise
de políticas públicas explicitou o estilo anômalo que possui em todo o
mundo a política de  e o caráter atípico que apresenta na periferia do
capitalismo. A Teoria do Ator-Rede permitiu deslindar as controvérsias que
surgiam no cenário da produção de conhecimento tecnocientífico. Os estu-
dos de gênero, que revelavam um território que até mesmo o pensamento
crítico sobre a relação tecnociência-sociedade havia ignorado, me permitiu
entender como a produção acadêmica das mulheres, “contaminada” com
valores que se opunham àqueles que impregnavam a tecnociência, assina-
lava a possibilidade de caminhos alternativos de geração de conhecimento
igualmente enviesados.
Deixei de fora as contribuições da filosofia da ciência e da filosofia da
tecnologia porque achei conveniente tratá-las em separado. E o faço por
duas razões. A primeira é porque elas parecem ser menos conhecidas dos
colegas que se dedicam aos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia. A
segunda porque minha incursão nesse território, que se deu posteriormente
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àqueles que nomeei –além do da Economia da Tecnologia, pelo qual tam-
bém transitei–, foi essencial para meu objetivo de conceber o marco analí-
tico-conceitual que eu buscava.
A filosofia da ciência, através de autores como Hugh Lacey (1999), com
sua discussão sobre a neutralidade da ciência, corroborou minha percepção
de que os cientistas se encontram condicionados por valores não-epistêmi-
cos. E complementou a visão sobre como o resultado de seu trabalho nas
universidades e institutos de pesquisa públicos, que deveriam manter-se a
salvo dos valores dominantes no contexto socioeconômico e político capi-
talista, estava por eles influenciado. O que fazia com que até aquilo que
poderia ser entendido com mais propriedade como pesquisa científica não
contribuía significativamente para construir aquela plataforma.
A filosofia da tecnologia, através de autores como André Gorz (1997;
2001), ainda que tratando de um território que não o latino-americano, ou
talvez por causa disto, reforçaram minha compreensão acerca da validez da
temática que me ocupava. Ressalto, nesse sentido, sua rejeição à falsa opo-
sição alegada pelo capital entre opulência frívola e austeridade virtuosa e a
denúncia que faz de sua necessidade de gerar escassez onde há abundância.
O que condiciona os trabalhadores a um modelo de consumo forçado, em
que ninguém deve produzir alguma coisa que precisa consumir e que nin-
guém pode consumir algo do que é obrigado a produzir.
Destaco, simetricamente, sua noção de suficiente como reguladora entre
o nível de satisfação e o volume de trabalho realizado. A qual aponta que,
diferentemente do trabalho assalariado, seriam as trocas colaborativas as
responsáveis pela consciência crítica e a dignidade dos cidadãos. Chamo
também a atenção para a oposição que postula entre a autonomia indivi-
dual e coletiva e o caráter repressivo e conformista do socialismo real. E para
sua proposta de usar o conhecimento para liberar tempo e tomar como guia
a noção de suficiente que lhe permite criticar o ideal produtivista, baseado
na ideia de crescimento sem fim e de necessidades crescentes, que segue
orientando o pensamento de esquerda.
Mas, foi Andrew Feenberg, mais do que esses autores –e por isto o des-
taque que assume sua obra neste texto–, quem mais contribuiu para minha
reflexão. Com sua discussão sobre a neutralidade da tecnologia, ele justifi-
cava, historicizava e formalizava com propriedade, mediante um enfoque
marxista, a ideia contida na abordagem da construção social da tecnologia
de que “os artefatos têm política” (Winner, 1986). E explicava o equívoco
em que incorriam e o risco que corriam os que, ambicionando utilizar a
tecnologia capitalista para materializar projetos políticos alternativos acei-
tavam os mitos da neutralidade e do determinismo. Em particular, por
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intermédio de sua crítica que apontava como um dos condicionantes da
degenerescência burocrática do socialismo soviético, acentuou-se minha
percepção de que a sustentabilidade, econômica, ambiental, política e cul-
tural da economia solidária não poderia prescindir de uma tecnociência
solidária.
Foi especialmente útil a taxonomia proposta por Andrew Feenberg
(2012) para caracterizar o modo como a tecnologia pode ser percebida por
distintos atores sociais. Como se mostra em seguida, estendendo sua análise
ao que entendo por tecnociência, é possível utilizar as quatro concepções
que propõe para melhor entender a crítica que faço àquele conceito de tec-
nologia social.
O quadro 1, elaborado a partir da sua contribuição, sintetiza a explica-
ção que se apresenta sobre essas quatro concepções.
Quadro 1. Concepções da tecnologia
NEUTRA
DETERMINISMO
Modernizaçao = otimismo da visão
Marxista tradicional: força motriz da
história; conhecimiento do mundo
natural que sirve ao Homem para
adaptar a natureza
INSTRUMENTALISMO
Visao moderna padrão = fé liberal,
otimista no progresso: ferramenta
mediante a qual satisfazemos
necessidades
AUTÔNOMA CONTROLÁVEL
SUBSTANTIVISMO
Meios e fims controlados pelo sistema =
pessimismo da Escola de Frankfurt: não
é merameramente instrumental,
incorpora valor substantivo, não pode ser
usada para propósitos diferentes de
individuos ou sociedades
TEORIA CRÍTICA
Opçao engajada = ambivalência e
resignação: reconhece o substantivismo,
mas é optimista; vê graus de liberdade; o
desafio é criar instituções para o controle
CONDICIONADA
Fonte: Elaborado baseado em Feenberg (2012).
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A primeira dessas concepções, a Instrumentalista, oferece uma funda-
mentação apropriada para esse conceito. Ela supõe, em consonância com o
otimismo liberal, positivista, moderno no progresso, que a tecnologia,
resultante de uma busca pela verdade e pela eficiência, é neutra. E que, em
consequência, submetida ao controle externo e a posteriori da ética, pode
ser usada para satisfazer infinitas necessidades da sociedade.
Pode também servir de fundamento àquela visão que entende a tecno-
logia como a aplicação da ciência, a concepção Determinista proposta pelo
marxismo convencional. Mantendo a crença na neutralidade da tecnologia,
ela incorpora noção de que seu desenvolvimento ocorre mediante exigên-
cias de eficiência e progresso que ela própria estabelece. Apesar das profun-
das divergências ideológicas que possui com o liberalismo, o marxismo
convencional aceita também a ideia da neutralidade que está na raiz de sua
construção econômico-produtiva e social. Assim, embora atribua o desen-
volvimento das forças produtivas, no modo de produção capitalista, ao
interesse do empresário em elevar a produtividade do trabalho passível de
ser apropriada por ele, dado que garantida pela propriedade privada dos
meios de produção, esta concepção entende que, dado que é linear e ine-
xorável, este desenvolvimento é o responsável, no longo prazo, pela mudan-
ça dos modos de produção.
Dessa forma, sua sucessiva tensão com as relações sociais de produção
–escravistas, feudais, capitalistas, socialistas– levaria ao modo de produção
comunista. Não seria, então, o controle pela via da ética, como propõe a
concepção Instrumentalista, mas a revolução socialista o que permitiria que
a mesma tecnologia que hoje oprime, por ser neutra, amanhã, quando
apropriada” pela classe trabalhadora, poderia ser por ela usada –no âmbito
de outras relações sociais de produção– para construir o socialismo.
A terceira concepção apresentada por Feenberg interpretando a contri-
buição da Escola de Frankfurt, é a do Substantivismo. Ela, nega a ideia da
neutralidade, mas conserva a do Determinismo: valores e interesses capita-
listas incorporados na produção da tecnologia condicionam a tal ponto sua
dinâmica que impedem seu uso em projetos políticos alternativos. Esta con-
cepção, ao contrário das anteriores, é pessimista em relação ao futuro da
Humanidade dado que tenderia a solapar correlações de forças
mudancistas.
A quarta concepção, que ele denomina Teoria Crítica, nega a ideia da
neutralidade, discordando, portanto, do Instrumentalismo. E, igualmente,
do Determinismo, uma vez que considera a tecnologia como portadora de
valores. Mas também não aceita a ideia do Substantivismo de que os valo-
res capitalistas lhe conferem características imutáveis que impedem a
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mudança social. Esta concepção considera, como faz o Instrumentalismo,
que a tecnologia pode ser controlada, negando, por isto o Determinismo.
É baseado nessa sua quarta concepção e nas considerações a respeito da
conveniência de utilizar a categoria de tecnociência em substituição às de
ciência e de tecnologia, que eu formulei a concepção da Adequação
Sociotécnica (Dagnino, 2008). Eu a enuncio como sendo uma postura
engajada e otimista. Dado que é uma construção social, ela pode ser repro-
jetada mediante a politização e internalização de valores e interesses alter-
nativos, e a observância de preceitos de pluralidade, controle democrático
interno e a priori, nas instituições onde costuma ser produzida. A Adequação
Sociotécnica tem como condição adicional a incorporação, a este processo
de reprojetamento, dos atores sociais diretamente interessados em contar
com um conhecimento para a produção de bens e serviços coerente com
seus valores e interesses.
FORMULANDO UM CONCEITO GENÉRICO DE TECNOCIÊNCIA
Foi a partir dessas considerações que empreendi meu esforço por formular
uma proposição que expressasse a metáfora da plataforma cognitiva de
lançamento da economia solidária partindo de um conceito genérico que
denotasse o conhecimento para a produção de bens e serviços; ou, a
tecnociência.
De imediato percebi que, para ser coerente com o objetivo que expres-
sei no início deste texto, o conceito deveria, em primeiro lugar, dar conta
das características da tecnociência existente numa sociedade capitalista
como a nossa e das motivações –valores e interesses– dos envolvidos com
sua geração. O que me levou a empregar uma abordagem que, como a que
tenho privilegiado na minha incursão no tema da filosofia da tecnologia
guiada pela contribuição de Andrew Feenberg, se alinhava ao marxismo.
Essa abordagem, mais do que outras que conheço, me parecia poder pro-
porcionar um guia adequado para fazer aparecer no conceito que eu busca-
va os elementos –ator social, processo de trabalho, controle (autogestionário
ou heterogestionário), propriedade dos meios de produção (privada ou
coletiva)– que eu necessitava para caracterizar de modo apropriado a tec-
nociência solidária.
Em segundo lugar, e além de trazer incorporados os elementos que
fazem com que um ator social tente modificar um processo de trabalho para
melhor atender aos seus interesses, era necessário que o conceito servisse ao
propósito de formular um conceito substitutivo ao de tecnologia social que
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evitasse a dubiedade daquele comumente empregado no âmbito dos movi-
mentos sociais, das s e dos órgãos de governo envolvidos com a econo-
mia solidária. E que, assim, pudesse contribuir para aumentar a eficácia de
suas ações.
A seguir, apresento passo a passo o conceito a que cheguei. O primeiro
passo é o de entender a tecnociência como a decorrência cognitiva da ação
de um ator social sobre um processo de trabalho, no qual, em geral, atuam
também outros atores sociais que se relacionam com artefatos, visando,
também em geral, à produção de bens e serviços.
A expressão “decorrência” é empregada para ressaltar a noção de que o
conhecimento tecnocientífico é uma consequência de uma tentativa –quan-
do bem-sucedida– de um ator social de alterar um processo de trabalho para
alcançar algum objetivo seu. Esse conhecimento, portanto, não é –ou não
costuma ser– algo sabido a priori, ex-ante, que é aplicado ou empregado
para tanto. Seu estatuto de tecnociência deriva justamente de um fato que
ocorre a posteriori, o de que essa tentativa permitiu alcançar o objetivo do
ator que alterou o processo de trabalho que ele controla.
Levando em conta a forma de propriedade dos meios de produção
envolvidos no processo de trabalho, é possível adicionar dois aspectos mais.
O primeiro, deriva do fato de que somente se o ator for o proprietário dos
meios de produção, ele poderá ter o controle sobre o processo de trabalho
necessário para alterá-lo. O segundo aspecto é que é essa propriedade o que
garante que o resultado material dessa alteração possa ser por ele
apropriada.
É então possível ampliar o conceito dizendo que tecnociência é a decor-
rência cognitiva da ação de um ator sobre um processo de trabalho que ele
controla e permite uma modificação –qualitativa ou quantitativa– no pro-
duto gerado –no sentido genérico de output– passível de ser apropriada
segundo o seu interesse.
Para avançar na formulação do conceito, busquei me apoiar na caracte-
rização de um caso bem conhecido: o da tecnociência capitalista. Ela seria
a decorrência cognitiva da ação do capitalista sobre um processo de traba-
lho que permite um aumento do valor de troca do produto –ou da produ-
ção– gerado passível de ser por ele apropriado –sob a forma de mais-valia
relativa. Aumento esse que pode ser em termos de quantidade –tecnologia
de processo– ou de qualidade –tecnologia de produto.
Bens e serviços produzidos para serem usados por indivíduos que pro-
duzem outros bens e serviços no âmbito de relações sociais de produção
adquirem, no capitalismo, um valor que transcende a satisfação que seu uso
possibilita. Seu valor de troca, formado mediante um processo de produção
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capitalista pela soma dos materiais empregados, pelo salário pago e pelo
lucro do empresário, é aquele em torno do qual irá flutuar seu preço efeti-
vamente realizado no mercado.
E é para diminuir o tempo durante o qual o trabalhador direto “retri-
bui” com o trabalho que realiza o salário que recebe, que o capitalista, ao
alterar o processo de trabalho, gera, tentativamente o conhecimento
tecnocientífico.
A coerção no capitalismo é exercida através do mercado de trabalho
caracterizado pela existência de um grande contingente de desempregados
–o “exército industrial de reserva”– que se traduz em constante pressão
sobre os trabalhadores para que aceitem as condições impostas pelos capi-
talistas. Esse tipo de coerção, embora muito efetiva, é mais sutil do que
aquela existente em sistemas econômicos prévios; o que faz com que ela
tenda a ser percebida como natural e inevitável.
É importante ressaltar que isso tudo –a propriedade privada dos meios
de produção, a extração de mais-valia, a apropriação do excedente– é garan-
tido pela ordem capitalista e legitimado pelo sistema de dominação ideo-
lógica que dela emana e que naturaliza as formas de contratação e
subordinação do trabalhador direto. E, também, viabilizado continuamen-
te no plano financeiro pela ampla gama de subsídios que o Estado propor-
ciona à acumulação de capital. Ao contribuir para obscurecer o caráter
moralmente questionável do comportamento do capitalista e o consenti-
mento da classe trabalhadora que é a contrapartida necessária para a cons-
trução da sua hegemonia –ideológica– e do próprio capitalismo, o Estado
confere legitimidade a essa específica forma de geração de conhecimento
tecnocientífico.
Abstraindo a situação especificamente capitalista e deslocando o foco
para uma hipotética situação genérica é possível distinguir três espaços em
que está inserido o ator social que atua sobre o processo de trabalho, o da
produção propriamente dita, o do contrato social e do contexto socioeco-
nômico. Entendendo-os heuristicamente como condicionados na ordem
inversa, levando em conta os atributos que assumem em cada uma das
situações que interessa abordar –capitalismo ou economia solidária–, eles
explicam as características da tecnociência –capitalista ou solidária– asso-
ciada a elas.
No espaço da produção, que pode ser entendido como aquele em que
transcorre o processo de trabalho, convivem dois elementos aparentemente
antagônicos. O primeiro e mais importante é o controle. Entendido como
a habilidade relativa ao uso de um conhecimento intangível ou incorpora-
do a artefatos tecnológicos, ele é uma característica inerente a qualquer pro-
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cesso de trabalho, qualquer que seja o modo de produção em que ele ocorra.
O segundo, é o de cooperação, entendido como associado ao ato de agir
em conjunto com outro visando a um benefício percebido como mútuo,
verificado em processos de trabalho grupais.
O segundo espaço –do contrato social– possui a coerção –ato de com-
pelir alguém a uma ação ou escolha diretamente ou por meio de mecanis-
mos ideológicos– como elemento essencial. Esse espaço, tal como antes
exemplificado para o caso do capitalismo, está condicionado pelo conjunto
dos órgãos do Estado que aparecem como instâncias privilegiadas de legi-
timação e naturalização de um dado contexto socioeconômico.
É no terceiro espaço, do contexto socioeconômico, que se encontra um
elemento central que condiciona ao longo do tempo histórico os outros
dois: a forma de propriedade dos meios de produção –ou do trabalho mor-
to. Essa propriedade pode assumir, nos processos de trabalho grupais, a for-
ma coletiva ou privada; podendo resultar, neste caso, na venda de força de
trabalho –ou trabalho vivo–, cuja contrapartida é o salário, que caracteriza
o capitalismo.
Tendo em mente esses três espaços e quatro elementos –do contexto
socioeconômico (propriedade dos meios de produção), do contrato social
(coerção) e da produção (controle e cooperação)– e recolocando o capita-
lismo no foco é possível dar um passo adiante.
A forma de propriedade privada dos meios de produção, apesar de ser
um aspecto, mais do que central, definidor do capitalismo –juntamente
com seu corolário, a compra e venda da força de trabalho– não é a res-
ponsável direta pelas características da tecnociência capitalista. Por ser
algo exógeno ao espaço produtivo, ela não é capaz de determinar univo-
camente os elementos controle e cooperação que ali sobrevêm e que carac-
terizam a tecnociência capitalista. Isso fica claro quando comparamos os
modos de produção escravista ou feudal com o capitalista. Em todos eles,
a propriedade dos meios de produção é privada. Não obstante, o modo
como se desenvolve o processo de trabalho no espaço produtivo é consi-
deravelmente diferente. Entre outras coisas, e principalmente, pela impos-
sibilidade de que exista no capitalismo um tipo de coerção –a violência
física– que os contratos sociais correspondentes –sobretudo o do
escravismo– possibilitaram.
O que explicaria os atributos atinentes aos elementos controle e coope-
ração do espaço da produção, que é um dos que definem as características
da tecnociência gerada em cada situação –ou modo de produção– específi-
ca, seria a relação Estado e sociedade ou o contrato social que envolve este
espaço. Existiria, então, uma mediação –o tipo de coerção admitido pelo
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contrato social que essa relação estabelece e legitima– no condicionamento
que exercem, em última instância, as relações sociais de produção.
A categoria de mediação entre o elemento “forma de propriedade” –ads-
trito ao contexto socioeconômico– e os elementos “controle” e “coopera-
ção” –adstritos ao espaço da produção– seria o elemento “coerção” –adstrito
ao contrato social– que seria também responsável pela determinação das
características da tecnociência.
A propriedade privada dos meios de produção que assegura o controle
do processo de trabalho implica uma forma de cooperação que influencia
a geração e utilização da tecnociência capitalista. O que faz com que ela
guarde consigo atributos impostos por esse tipo de controle e cooperação
mesmo quando deixe de existir aquele elemento exógeno: a propriedade
privada dos meios de produção.
Um resultado importante dessa tentativa de entender as especificidades
da tecnociência capitalista é a proposição de que aquilo que a caracteriza
não é apenas a propriedade privada dos meios de produção, mas o tipo de
controle e cooperação que esta determina ou faculta e que ficam impreg-
nados na tecnociência. O fenômeno de histerese que isso pode originar é
observável em fábricas recuperadas pelos seus trabalhadores –quando já não
existe a propriedade privada dos meios de produção– que tendem a manter
as características tecnocientíficas, ou tecnológicas, vigentes no processo de
trabalho que nelas ocorre.
Esse conjunto de considerações permite conceituar a tecnociência capi-
talista como a decorrência cognitiva da ação do capitalista sobre um pro-
cesso de trabalho que, em função de um contexto socioeconômico –que
engendra a propriedade privada dos meios de produção– e de um acordo
social –que legitima um tipo de coerção que se estabelece por meio do mer-
cado de trabalho e pela superestrutura político-ideológica mantida pelo
Estado uma coerção ideológica por meio do Estado capitalista– que ense-
jam, no espaço produtivo, um controle –imposto e assimétrico– e uma coo-
peração –de tipo taylorista ou toyotista–, permite uma modificação no
produto gerado passível de ser por ele apropriada.
Depois de considerar esses aspectos, é possível, adicionando mais um
componente aos já citados, chegar ao conceito genérico de tecnociência.
Ela é a decorrência cognitiva da ação de um ator sobre um processo de tra-
balho que ele controla e que, em função das características do contexto
socioeconômico, do acordo social, e do espaço produtivo em que ele atua,
permite uma modificação no produto gerado passível de ser apropriada
segundo o seu interesse. Ou, mais simplesmente, tecnociência é a decor-
rência cognitiva da ação de um ator social sobre um processo de trabalho
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que ele controla que permite uma modificação –qualitativa ou quantitati-
va– no produto gerado –no sentido genérico de output– passível de ser
apropriada segundo o seu interesse.
Apresentado o conceito genérico de tecnociência, é interessante retornar
à proposição que separa a ciência da tecnologia que critiquei inicialmente
para mostrar a conveniência de sua adoção. Despido do conteúdo mais apo-
logético ali explicitado, o conceito de tecnologia aparece na literatura espe-
cializada como a capacidade originada pela aplicação prática de
conhecimento métodos, materiais, ferramentas, máquinas e processos para
combinar recursos visando a geração de produtos desejados de modo mais
rápido ou em maior quantidade ou ainda proporcionando um produto
mais barato e com maior qualidade.
Como o leitor pode constatar, o conceito aqui proposto se diferencia
daquela proposição em vários aspectos. Em primeiro lugar, porque ela não
se refere ao ator que modifica o processo de trabalho –e que está interessa-
do em beneficiar-se desta ação– e, por isso, não aclara que se ele não o con-
trola –no sentido “técnico”, do espaço produtivo– não haverá como efetivar
qualquer mudança que possa resultar em conhecimento tecnocientífico;
por mais interessante, novo, atrativo, ou “científico” que ele possa vir a ser.
Em segundo, porque a proposição usual supõe que qualquer mudança
no processo de trabalho que permita aumentar a quantidade de produto
gerado durante o tempo a ele dedicado tenderá quase que inevitavelmente
a ser realizada pelo ator que controla o processo de trabalho. Enquanto o
que o conceito que aqui se propõe coloca em evidência um fato facilmente
observado: isso só irá ocorrer se o ator tiver alguma garantia de que o pro-
duto resultante possa ser por ele apropriado –ou dividido de acordo com o
seu interesse.
Em terceiro lugar porque chama a atenção que essa possibilidade é facul-
tada por um acordo social que legitima uma certa forma de propriedade e
de relação de exploração. E que se esse acordo –ou sua manutenção– deixar
de existir ou se encontrar ameaçado, ainda que o ator siga controlando o
processo de trabalho, ele não fará qualquer alteração. Em quarto lugar por-
que exclui a possibilidade de que um ator que não controla o processo de
trabalho –o trabalhador ou o produtor direto, no caso da economia capi-
talista– venha a modificá-lo, uma vez que a ação concreta, independente-
mente de sua intenção, não pode ser tomada por ele.
É fácil perceber, comparando o conceito com a proposição usual, que
ela, por omissão, abstrai, naturalizando, o contexto capitalista que a envol-
ve e dá sentido. Essa característica, como é bem sabido, é comum a muitos
outros conceitos das ciências sociais e também das ciências duras que, por
62 RENATO DAGNINO
terem sido definidos sob a égide do capitalismo, não fazem a ele referência.
E, nessa medida, propositalmente ou não, emprestam a eles um estatuto de
universalidade e atemporalidade que mascara seu caráter de construções
histórica, social e politicamente determinadas.
Esse aspecto torna evidente que uma tecnociência alternativa –como a
tecnociência solidária–, só poderá emergir em espaços em que, como sugere
a proposta de adequação sociotécnica inspirada na contribuição da teoria
crítica de Feenberg, existam valores e interesses coerentes com um estilo de
desenvolvimento alternativo –como os empreendimentos solidários–, que
são por extensão contra-hegemônicos aos dominantes naqueles ambientes
onde é gerada a tecnociência capitalista.
Para que isso ocorra, deve existir, ainda que limitada e circundada por
um contexto em que siga vigorando a propriedade privada dos meios de
produção, uma outra forma de propriedade. Não a estatal, típica do socia-
lismo “real”, mas a coletiva, característica da economia solidária.
Assim, embora a propriedade coletiva dos meios de produção seja uma
condição genérica para um estilo de desenvolvimento alternativo, é plausí-
vel conceber uma situação prévia –que pode ser tão duradoura quanto
aquela dos séculos que tardou a transição do feudalismo para o capitalis-
mo– onde esses ambientes possam existir e prosperar. Mas eles, quase que
por construção, dificilmente serão aqueles situados nas empresas privadas.
O CONCEITO DE TECNOCIÊNCIA SOLIDÁRIA
Como procurei mostrar, o conceito genérico de tecnociência que formulei
decorre de uma análise de cunho social e econômico sobre como evoluiu
ao longo da história o conhecimento empregado pelo Homem para a pro-
dução de bens e serviços. É um ponto marcante dessa trajetória analítica a
denominação que faço desse conhecimento, compreendido como uma
recorrente imbricação do que na modernidade se costuma chamar de ciên-
cia e tecnologia, e outros saberes muito diversos –artesanato, arte, crendi-
ces, religião, etc.–, inclusive aquele que atualmente se conhece como
inovação, como tecnociência. Seu ponto de chegada é a particularização do
conceito genérico de tecnociência para chegar ao de tecnociência solidária,
que me leva à seguinte formulação: tecnociência solidária é a decorrência
cognitiva da ação de um coletivo de produtores sobre um processo de tra-
balho que, em função de um contexto socioeconômico –que engendra a
propriedade coletiva dos meios de produção– e de um acordo social –que
legitima o associativismo–, os quais ensejam, no ambiente produtivo, um
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controle –autogestionário– e uma cooperação –de tipo voluntário e parti-
cipativo–, provoca uma modificação no produto gerado cujo resultado
material pode ser apropriado segundo a decisão do coletivo –empreendi-
mento solidário.
Colocado o conceito, há que ressaltar seu viés policy e politically oriented.
E enfatizar que ele decorre da intenção de, mediante a conscientização,
mobilização, participação e empoderamento dos movimentos populares e
por meio da ação do Estado, gerar um conhecimento para a produção de
bens e serviços capaz de promover a sustentabilidade dos empreendimentos
solidários que estão emergindo no âmbito da economia capitalista periféri-
ca brasileira.
Ele é, por isso, distinto daquele de tecnologia social que comentei na
terceira seção prometendo a crítica que, agora, posso enunciar. Antes disso,
aclaro que participei do processo que originou esse conceito, quando fui
solicitado a formulá-lo no artigo a isto dedicado no livro que marcou o iní-
cio das ações da Rede de Tecnologia Social, em 2003 (Dagnino, Brandão e
Novaes, 2004). Nele, em vez de apresentar um conceito, decidi com meus
coautores escrever “Sobre o marco analítico-conceitual da tecnologia
social”, que foi o título que a demos ao trabalho. Ali explicamos como algu-
mas contribuições do campo dos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia
possibilitavam evoluir do movimento da tecnologia apropriada, iniciado
nos anos 1970, evitando os equívocos cometidos e dotando o novo concei-
to –de tecnologia social– de maior robustez e eficácia. Mais do que apre-
sentar um conceito mais elaborado do que terminou sendo aceito de forma
generalizada, nossa intenção era convidar as organizações e as pessoas que
se estavam incorporando à Rede de Tecnologia Social a refletir sobre como
elas deveriam atuar no sentido de materializar sua intenção de promover a
inclusão social através do desenvolvimento tecnocientífico.
O fato de que uma parcela de seus integrantes entendia a tecnologia
social como não sendo totalmente aderente ao conceito que se generalizava,
não impediu que seguíssemos nela trabalhando. Mais do que isso, nos desa-
fiou a seguir elaborando no campo teórico para chegar a um marco analí-
tico-conceitual como o que aqui se apresenta.
A tarefa de apresentar aos companheiros de jornada os resultados que
iam sendo alcançados em eventos em que é sempre exíguo o tempo de fala
não tem sido fácil. Ela exigiu que o conceito de tecnociência solidária fosse
apresentado de maneira coerente com seu interesse.
Num evento recente, para cumprir esse objetivo, o conceito foi apresen-
tado como de uma outra maneira. Eu o enunciei como sendo um “modo
como conhecimentos devem ser empregados visando à produção e ao con-
64 RENATO DAGNINO
sumo de bens e serviços em redes de economia solidária, respeitando seus
valores e interesses, para satisfazer necessidades coletivas”.
Mais do que simplesmente a título de exemplo, para sugerir novas manei-
ras de explorar a proposta da tecnociência solidária, a maneira como procedi
naquela oportunidade. Para esclarecer o conceito fui destacando algumas das
expressões nele contidas e explicando-as com o auxílio da tabela 1.
Modo (1) como conhecimentos (2) devem (3) ser empregados (4) visan-
do à produção (5) e ao consumo de bens e serviços (6) em redes de econo-
mia solidária (7), respeitando seus valores e interesses (8), para satisfazer
necessidades (9) coletivas (10).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir, parece adequado responder à pergunta que a esta altura quem
me lê deve estar formulando: mas por que abandonar o conceito de tecno-
logia social e adotar o de tecnociência solidária?
A razão principal é que aconteceu neste caso o que é relativamente fre-
quente com conceitos relacionados às ciências sociais que possuem uma
incidência no campo da policy e da politics: o mesmo significante passou a
ser usado para designar um significado distinto daquele originalmente a ele
atribuído. Ocorreu o que se conhece como um deslizamento semântico que
tende a originar, nesse campo, uma confluência perversa. O que me levou,
temerária e resignadamente, a considerar mais apropriado, em vez de seguir
insistindo na crítica à forma como esse termo vem sendo empregado, assu-
mir o risco de conceber um novo conceito.
Vários são os conceitos de tecnologia social cunhados por organizações
envolvidas com o tema e que são reiteradamente citados em documentos
de diversa natureza; inclusive em trabalhos acadêmicos.
O mais conhecido é, provavelmente, o da Fundação Banco do Brasil
que foi adotado pela Rede de Tecnologia Social: “Tecnologia Social com-
preende produtos, técnicas e/ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas
na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de
transformação social”. Não por acaso, ele é muito semelhante ao do
Instituto de Tecnologia Social (), que define tecnologia social como o
conjunto de técnicas, metodologias transformadoras, desenvolvidas e/ou
aplicadas na interação com a população e apropriadas por ela, que repre-
sentam soluções para inclusão social e melhoria das condições de vida” (
Brasil, 2004). A Wikipédia reúne os dois conceitos: “Considera-se tecno-
logia social todo o produto, método, processo ou técnica, criado para solu-
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Tabela 1. Conceito de tecnociência solidária
(1)
modo
é um modo do original, peculiar, aberto, mutante e adaptativo baseado
numa cultura, marco analítico-conceitual e em instrumentos metodológico-
operacionais específicos: a tecnociência solidária é uma proposta em
construção
(2)
conhecimentos
de qualquer natureza –científico, tecnológico, religioso, ancestral...– e
origem –academia, empresas, povos originários, movimentos populares,
excluídos...– desde que coerentes com os valores e interesses
característicos da economia solidária
(3)
devem
a tecnociência solidária é uma proposta assumidamente normativa,
utópica, um objetivo estratégico em processo, a ser alcançado; associado a
um dever-ser
(4)
empregados
o que envolve instrumentos metodológico-operacionais específicos, como o
da adequação sociotécnica que propõe com suas sete modalidades o
reprojetamento da tecnociência capitalista
(5)
produção
a partir de insumos naturais, produtos e rejeitos de empresas, produtos de
redes de economia solidária, etc.
(6)
consumo de
bens e serviços
consumo final de bens e serviços pelas famílias, diretamente, mediante
moeda social, etc., ou através das compras públicas: merenda e transporte
escolar; consumo produtivo de bens e serviços de empresas ou de redes de
economia solidária; aquisição, pelo Estado, de bens para implementar
políticas públicas não relacionadas ao consumo das famílias –uniforme
para presos– ou de serviços para implementar aquelas não relacionadas ao
consumo das famílias –manutenção de equipamentos públicos, cursos
d´água–, intermediação monetária, creditícia e financeira
(7)
redes de
economia
solidária
insistência numa associação exclusiva e excludente entre tecnociência
solidária e economia solidária, caracterizada pela propriedade coletiva dos
meios de produção, autogestão, relações horizontais, solidariedade,
distribuição do excedente material ou econômico decidida pelos seus
integrantes; viabilizada mediante estratégias de “trabalho e renda”
elaboradas –formuladas, implementadas e avaliadas– pelo Estado
(8)
interesses
processos de adequação sociotécnica deverão sempre levar em conta os
valores –morais, culturais, econômicos, etc.– e o interesse de consolidação
e expansão da economia solidária
(9)
necessidades
referência à diferença entre necessidade e demanda –necessidade com
poder de compra–: satisfação de necessidades mediante valores de uso –
necessidades materiais e demandas cognitivas associadas
(10)
coletivas
o foco da economia solidária e, por isto, da tecnociência solidária, deve ser
em atividades que visem ao bem-estar de toda a sociedade –e da
conservação ambiental–, em especial as levadas a cabo de maneira
também coletiva e associadas à vida em comunidade
66 RENATO DAGNINO
cionar algum tipo de problema social e que atenda aos quesitos de
simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade (e reaplicabilidade) e impacto
social comprovado” (Wikipedia, s/d).
Se se tem em mente o que aqui se apresentou acerca do que apreendi
sobre filosofia da tecnologia, fica claro que o conceito subentende aspectos
que precisam ser explicitados. A começar pelo fato de que existe um ator,
que não é especificado, mas que seria distinto da “população” ou “comuni-
dade”; e que seria responsável pela “aplicação” de algo que não é indicado,
mas que se pode supor que seja um conhecimento distinto daquele que ela
possui. E que esse ator seria responsável por criar, em interação com ela,
tecnologias –“produto, método, processo ou técnica”– adequadas às suas
necessidades.
Esse ator não nomeado só poderia ser aquele que, especializado em pro-
duzir conhecimento baseado na compreensão de como funcionam a natu-
reza, os homens e as sociedades seria capaz de fazer com que a produção de
bens e serviços pela “população” ou “comunidade” gerasse soluções para
inclusão social e melhoria das condições de vida, proporcionando um
“impacto social comprovado”.
Ou seja, os pesquisadores e tecnólogos situados em instituições públicas
de ensino e pesquisa.
Embora o conceito não indique qual seria o fundamento cognitivo des-
sa “criação”, “desenvolvimento” ou “aplicação”, é plausível inferir que ele
seria o resultado de uma composição ou de uma mistura da ciência sobre a
qual esse ator possui um monopólio quase absoluto, em função do papel
hegemônico na elaboração da política de ciência, tecnologia e inovação de
nossa região periférica, com o conhecimento oriundo da experiência da
população” ou “comunidade”, o saber empírico, ancestral ou popular.
Uma releitura do conceito levaria a entender a tecnologia social como
uma forma de aplicação da ciência diferente da usual, já que seria “desen-
volvida na interação com a comunidade” e orientada para a “transformação
social”. O que implica que o resultado desse processo de desenvolvimento
–a tecnologia social– seria, então, quase que por oposição ou negação, dis-
tinto daquele levado a cabo para aumentar a explotação do trabalhador e o
lucro das empresas e evitaria suas implicações nocivas.
Ou seja, o fato de a aplicação da ciência ocorrer na “interação com a
comunidade” alavancaria a “transformação social”. Não parece necessário
indicar o quanto essas suposições contrastam com o que se apresentou nes-
te trabalho e, em particular, o quanto elas contradizem o exposto pelos
autores do campo da filosofia da tecnologia que explorei.
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Para terminar, indico mais dois pontos. O primeiro, se refere à ideia de
que o conceito de tecnociência solidária, colocado em substituição ao de
tecnologia social, como derivado da especificação do conceito –genérico–
de tecnociência pode contribuir para evitar o maniqueísmo do conceito
usual de tecnologia social concebido por negação ao da tecnologia
convencional.
E, dessa forma, para aumentar a eficácia das ações levadas a cabo no
âmbito dos movimentos sociais envolvidos com a economia solidária. Um
último ponto, que se depreende do que aqui se elaborou, é que parece ingê-
nua e inócua a postura daqueles que, ao criticar a ideia de neutralidade da
tecnociência capitalista, almejam uma outra que, esta sim, seja neutra e ver-
dadeira. E que, em consequência, pretendem que os envolvidos com as ati-
vidades de pesquisa em instituições públicas se esforcem –reativamente– para
não permitir que elas sejam “contaminadas” com os interesses privados. A
postura que aqui se propõe é, ao contrário, francamente proativa.
Coerentemente com a concepção da adequação sociotécnica, o que se
propõe é a “contaminação” dos espaços onde se lida com a tecnociência por
aqueles que defendem um estilo alternativo de desenvolvimento com os
valores e interesses dos atores sociais que serão os mais beneficiados com
sua implementação.
O que implica uma atividade de conscientização “para dentro” dessas
instituições públicas de maneira a ir ampliando esses espaços e nelas dispu-
tar a hegemonia que levará a sua reorientação (Dagnino, 2018).
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