1
DOI: https://doi.org/10.48160/18517072re51.45
A tecnologia e o controle do tempo nas dinâmicas
de trabalho: da Revolução Industrial ao
Neoliberalismo
Luisa Pereira Manske
*
Maria Sara de Lima Dias
**
Resumo
A tecnologia e o controle do tempo se encontram presentes nas dinâmicas de trabalho,
regulando as atividades dos trabalhadores desde a Revolão Industrial a o
Neoliberalismo. Desta forma, as relações com o trabalho são mediadas pelo tempo
com o desenvolvimento de maiores recursos de gestão pela tecnologia implantada.
Observam-se impactos não só na forma mais no conteúdo do trabalho, gerando uma
profunda mudança social nas formas de vida. Objetivou-se fazer uma relação entre a
teoria marxista no que diz respeito a aspectos da influência da tecnologia na
transformação das relações de trabalho contemporâneas que mostram os avanços do
*
Programa de s-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) / Universidade Tecnológica
Federal do Para(UTFPR), Curitiba, Brasil. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). Correo electrónico: lpmanske@gmail.com.
**
Programa de Pós-Graduação Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) / Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), Curitiba, Brasil. Correo electrónico: mariadias@utfpr.edu.br.
2
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
capitalismo e seus efeitos na subjetividade e nos sentidos atribuídos ao mundo do
trabalho. O sentimento de aceleração do tempo mostra como tudo parece estar mais
rápido e como vive-se com medo e com a sensação de ansiedade e insegurança cada
vez maior pela falta de tempo. Conclui-se que as dinâmicas do trabalho neoliberal
apontam perversidades nas diferentes formas de precarização atreladas por meio do
maior controle do tempo da vida em prol da máxima produtividade. Destaca-se a
relevância da discussão acerca do controle do tempo como forma de exploração de
trabalho no sistema capitalista, visto que esta dimensão influencia a precarização da
própria vida dos trabalhadores na lógica neoliberal.
Palavras-Chave
TEMPO; PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO; NEOLIBERALISMO.
Introdução
A relação entre a tecnologia e o controle do tempo foram fatores essenciais para o
desenvolvimento da estrutura e da lógica de trabalho nas indústrias do sistema
capitalista. A definição de trabalho expressa por Engels (1977), identifica o
trabalho como uma das condições básicas da vida dos seres humanos, a tal
ponto deste afirmar que o trabalho criou o próprio homem. Desde a pré-história
da civilização os seres humanos se utilizam do trabalho para a criação de
ferramentas e instrumentos que facilitem o atendimento de suas necessidades
básicas como a alimentação e a defesa. Portanto, os humanos o só modificam
3
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
a natureza com o uso de ferramentas e instrumentos de trabalho como a
dominam e submetem ao capricho destas necessidades.
Na Revolução Industrial, a demanda por trabalhadores para as fábricas fez com que
o capitalismo tamm se apropriasse destas definições e enaltecesse uma
ideologia na perspectiva de considerar que o trabalho é a única forma de
realização da vida. O trabalho é desta tal época histórica representado como
uma atividade glorificadora, na qual se expressa o potencial da produtividade de
um ser humano. Dessa maneira, a brica mantinha o discurso do trabalho como
enobrecedor e divulgava a produtividade por meio da maquinaria (De Decca,
1995). Tais visões e representações sociais sobre o trabalho são veiculadas e
mantidas através das instituições sociais. Entretanto, a realidade do trabalho
diretamente vivenciado na fábrica volta-se para a produção de mais-valia para o
detentor dos meios de prodão. Marx (1975), ao escrever sobre a fábrica,
afirma que:
Toda produção capitalista, à medida que ela não é apenas processo de trabalho, mas
ao mesmo tempo processo de valorização do capital, tem em comum o fato de
que não é o trabalhador quem usa as condições de trabalho, mas, que, pelo
contrário, são as condições de trabalho que usam o trabalhador. (Marx, 1975:
56)
As condições pré-existentes de produção artesanal de mercadorias e suas respectivas
trocas entre consumidores criaram uma configuração sem a qual o capitalismo
não poderia ter surgido. A produção de mais-valor a partir da produção de
mercadorias configura-se, no entanto, como a base do sistema capitalista que,
para isso, apropria-se das técnicas de forma a manter um controle total sob toda
4
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
a produção. Esta mudança da produção artesanal para a produção industrial
altera as relações sociais e a configuração da vida familiar e do trabalho (Harvey,
2018). Visto que a produção fabril demanda um funcionamento contínuo e exato
da maquinaria, os trabalhadores, antes acostumados a um sistema artesanal de
produção familiar, são inseridos a um sistema disciplinar rígido de
comportamento com total controle do tempo.
Os trabalhadores que primeiro vivenciaram estas mudanças, seja na valorização
moral do trabalho ou no controle e utilização produtiva do tempo, sentiram mais
bruscamente o impacto destas normas no seu cotidiano. Estas normas tornaram-
se mais enraizadas na cultura com o passar do tempo, constituindo um dos
grandes triunfos dos capitalistas (De Decca, 1995).
Assim, o sujeito moderno, proveniente de uma Revolução Industrial cujo regime de
trabalho influenciou diretamente no ritmo de vida pessoal dos trabalhadores,
viveu marcado por regimes normativos provenientes dos espaços de uma
sociedade rural e cristã, das organizações políticas e do âmbito financeiro do
trabalho. A partir de um discurso científico e capitalista do Iluminismo, construiu-
se um ser humano que é produtivo, consumidor, possui força de trabalho e
precisa atender suas necessidades básicas para viver. Este sujeito moderno
produtivo é a grande obra da sociedade industrial, no qual não basta apenas
aumentar a produção, mas gerar nas pessoas um estímulo a produzirem. Esta
educação da mente leva a um controle da organização dos tempos de trabalho,
de lazer e descanso, um processo de "gestão de mentes" em uma busca
incessante por prazer e felicidade (Dardot e Laval, 2016).
Como afirmado por Thompson (1998: 289): “Estamos preocupados simultaneamente
com a percepção do tempo em seu condicionamento tecnológico e com a
medição do tempo como meio de exploração da mão-de-obra” que por vezes se
5
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
encontra ocultada nas estratégias de reprodução do sistema capital. Para Rosa
(2019), a consideração da dimensão temporal é essencial para a compreensão
das mudanças que vem ocorrendo tanto na sociedade quanto na percepção
individual de si mesmo das pessoas que estão vivenciando este processo. Como
no momento atual, o rompimento da linearidade do tempo e do espaço
promovido pela pandemia do COVID-19, por exemplo, altera a configuração da
sociedade.
A adaptação ao tempo das máquinas trazia nas sociedades industriais e modernas,
por outro lado, uma separação mais clara entre os momentos de “trabalho” e os
momentos de “vida” (Thompson, 1998). Nesta sociedade industrial do século XIX
e XX, havia, portanto, dentro de certos limites, uma maior possibilidade de uma
separação entre as diferentes esferas da vida particular dos trabalhadores, com
uma utilização dos seus direitos em paralelo com a direção por seus interesses
econômicos (Dardot e Laval, 2016).
Dardot e Laval (2016) salientam, entretanto, que a perspectiva da lógica neoliberal
vivenciada atualmente difere desta modernidade liberal. A partir do final da
década de 70, o neoliberalismo expande-se e passa a ser implementado pelos
países capitalistas. Dentre as suas características, estão a privatização
acelerada, o enxugamento do Estado, desmontagem dos direitos sociais dos
trabalhadores e a propagação do individualismo (Antunes, 2009).
Em um contexto em que a sociedade é vista como uma grande empresa constituída
de empresas, o sujeito liberal, mais do que um empregado, é considerado em si
mesmo uma pequena empresa que faz parte de uma instituição-empresa maior.
O sujeito neoliberal é, portanto, competitivo. Esta nova condição social implica
um novo estado subjetivo que apresenta sintomas de uma mudança na
construção de si mesmo. Nesse sentido, a estrutura neoliberal de trabalho
6
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
impacta diretamente na subjetividade das pessoas e na sua experiência social e
cultural na atualidade (Dardot e Laval, 2016).
Para González Rey (2009), a subjetividade de cada um é gerada por um sistema dos
sentidos que são produzidos no encontro do sujeito com as experiências vividas.
Estes encontros geram emoções que guiam suas ações e comportamento e que
caracterizam, portanto, a história e a vida social de cada sujeito. Dessa forma,
observa-se a importância de compreender a perspectiva dos sujeitos no
desenvolvimento de suas atividades no contexto do trabalho neoliberal, visto a
inflncia deste nas suas experiências sociais e sua identidade.
Parte-se da análise histórica em Marx (1975) para compreender os fenômenos de
trabalho atuais e o quanto eles impactam nas relações sociais e culturais dos
trabalhadores do século XXI. Neste contexto, as normas aplicadas na brica da
Revolão Industrial já foram internalizadas e se transformam em formas mais
avançadas às quais a nova geração de trabalhadores vem se adaptando, o que
tem gerado uma precarização do trabalho e diversos efeitos adoecedores. Dessa
forma, objetivou-se relacionar os conceitos de Marx (1975) com semelhança à
utilização das máquinas e da tecnologia nas fábricas e o impacto desta na
mudança das relações de trabalho. Ainda, buscaram-se as dimensões do tempo
presentes para os trabalhadores à época da Revolução Industrial em sua relação
com as definições contemporâneas de aceleração do tempo de Rosa (2019) e
as mudanças nas formas de trabalho atuais no neoliberalismo em Dardot e Laval
(2016).
A mediação da tecnologia e o maquinário em Marx (1975)
7
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
A tecnologia é um aspecto fundamental para a compreensão das dinâmicas do capital
em movimento (Harvey, 2018). Neste contexto surge a discussão acerca do
papel das máquinas na perpetuação e aprimoramento do capital. O
funcionamento das máquinas demanda uma relação disciplinar com o tempo e
a sincronização dos humanos aos tempos sociais, o que, no caso da Revolução
Industrial, referia-se ao tempo das máquinas. Visto que esta sincronização
apresenta um impacto nas suas relações culturais e sociais, é de importância
compreender o papel da tecnologia na construção da relação das pessoas com
o trabalho.
No Capítulo XIII d’O Capital, Marx (1975) questiona a ideia de que o desenvolvimento
das máquinas proporcionaria, de alguma maneira, um avio do trabalho
realizado pelos trabalhadores das bricas. Do contrário, esta maquinaria tem
como objetivo tornar mais barato as mercadorias produzidas e mais rápida a
produção, de forma que o capitalista possa produzir e lucrar mais.
Os mecanismos de funcionamento da máquina de trabalho remetem em grande parte
às ferramentas utilizadas pelos artesãos antes do advento da maquinaria na
produção industrial de larga escala. Visto que a quantidade de movimento e de
produção simultânea pelo trabalhador é limitada à sua condição humana, a
máquina realiza o trabalho em maior produtividade (Marx, 1975).
A maquinaria opera como qualquer outro componente do capital constante: não cria
nenhum valor, mas transfere o seu próprio valor ao produto que produz. Dessa
maneira, a máquina é um componente de valor deste produto (Marx, 1975).
Entretanto, a maquinaria, que entra por inteiro no processo de realização do
trabalho, é adicionada apenas em parte ao processo de valorização do produto.
Além disso, a produtividade das máquinas é contabilizada na medida em que o
seu funcionamento substitui a força de trabalho humana (Marx, 1975).
8
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
O trabalho vivo realizado pelos seres humanos, é, então, a única fonte possível de
mais-valor. O papel das máquinas neste processo é a de apenas ajudar a
aumentar a produtividade desta força de trabalho humana para que, assim, o
valor total permaneça o mesmo, mas o valor das mercadorias diminua. A crença
de que existe uma produção de valor pelas máquinas é o que Marx considera
em O Capital como o fetichismo da tecnologia (Harvey, 2018). Além disso,
[...] tudo leva a crer que a fábrica surgiu muito mais por imperativos organizacionais
capitalistas de trabalho do que por pressões tecnológicas. Segundo, a tecnologia
teve papel decisivo onde e quando a sua utilização facilitava e obrigava a
concentração de trabalhadores e portanto a afirmação do sistema de fábrica (De
Decca, 1995: 32).
A maquinaria, enquanto parte fundamental da indústria moderna com um papel central
na reprodução e manutenção do sistema capitalista, apresenta efeitos imediatos
sobre o trabalhador. A relação do trabalho com o tempo surge então na produção
mecanizada com o prolongamento da jornada de trabalho e a intensificação
deste trabalho (Marx, 1975).
Se a maquinaria é o meio mais poderoso de elevar a produtividade do trabalho, isto
é, de encurtar o tempo de trabalho necessário à produção de uma mercadoria,
ela se torna, como portadora do capital, inicialmente nas indústrias de que se
apodera de imediato, o mais poderoso meio de prolongar a jornada de trabalho
para além de qualquer limite material (Marx, 1975: 36).
9
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
As máquinas fornecem o movimento automático na prodão industrial que
permitiriam uma produção contínua e ininterrupta não fosse as limitações
naturais necessidades físicas e a ppria vontade dos seres humanos
designados a operá-las. Entretanto, quanto maior o tempo de funcionamento
ininterrupto da máquina, maior o número de produtos aos quais o valor
transferido por ela será dividido. Portanto, menor o valor adicionado à cada
mercadoria individualmente. Dessa maneira, mais se sobra enquanto mais-valor
ao capitalista. Aumentar o número de trabalhadores, porém, exige da fábrica um
aumento tamm no seu investimento em maquinaria e espaço físico, enquanto
o prolongamento da jornada de trabalho dos trabalhadores existentes o
demanda tais movimentações (Marx, 1975). No momento em que o
prolongamento da jornada de trabalho é impedido, por meio de regularizações
que estabelecem uma quantidade máxima de horas de trabalho, -se lugar a
um processo de intensificação deste mesmo trabalho, com vistas a produzir
ainda mais no tempo agora limitado pela lei (Marx, 1975).
Na descrição da fábrica, Marx (1975) afirma que, para que a maquinaria opere em sua
potência máxima, exige-se do trabalhador uma subordinação técnica, disciplina
e regularidade nos bitos de trabalho que não eram presentes na produção
artesanal de mercadorias. Os trabalhadores precisavam, então, de toda uma
mudança de hábitos para se adequarem às máquinas.
Neste sentido, segundo Thompson (1998), no controle do trabalho dentro do sistema
capitalista, a sincronização é elemento importante para a atenção ao tempo
necessário para que o trabalho seja feito. Enquanto a manufatura ainda era
desenvolvida em um sistema domiciliar e o sistema de trabalho orientado por
tarefas era dominante, esta necessidade não se dava da mesma forma, o que
criava padrões de trabalho irregulares organizados pelo próprio trabalhador e,
10
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
portanto, mais difíceis de controlar pelo capitalista. Na introdução da grande
indústria, tem-se a possibilidade de agrupar todos os trabalhadores em um
espaço, com a mediação das máquinas exigindo a sincronização do tempo de
forma a se ter maior controle seja da quantidade produzida, seja da força de
trabalho dos trabalhadores. A estrutura de poder associada ao controle do tempo
era tão marcada que se buscava impedir que os trabalhadores detivessem
qualquer conhecimento sobre o tempo e as horas (Thompson, 1998). Com a
adaptação ao novo sistema de tempo, que se deu de forma lenta, muitas vezes
atravessando gerações, internalizou-se a concepção de que o tempo é dinheiro:
A primeira geração de trabalhadores nas fábricas aprendeu com seus mestres a
importância do tempo; a segunda geração formou os seus comitês em prol de
menos tempo de trabalho no movimento pela jornada de dez horas; a terceira
geração fez greves pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual
adicional (1,5%) pelas horas trabalhadas fora do expediente. Eles tinham aceito
as categorias de seus empregadores e aprendido a revidar os golpes dentro
desses preceitos. Haviam aprendido muito bem a sua lição, a de que tempo é
dinheiro (Thompson, 1998: 294).
Produz-se eno a noção de um “tempo útil” a partir da ampliação e desenvolvimento
deste mercado produtivo, que visa disciplinar a classe burguesa em ascensão e
a trabalhadora por um conjunto de novas normas e valores que possuem o
tempo como um relógio moral. Dessa maneira, a Revolução Industrial foi
vitoriosa não pelos aspectos técnicos e tecnológicos que deram suporte à
produção capitalista, mas tamm por providenciar uma nova forma eficiente de
11
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
controle das relações de trabalho e hierarquia entre capitalistas e trabalhadores
(De Decca, 1995).
O tempo na sociedade moderna em Hartmut Rosa (2019)
Thompson (1998) explora a relação desenvolvida com o relógio quando o tempo se
transformou em elemento essencial para a manutenção do capitalismo por meio
da produção fabril. Este pequeno novo instrumento passa a fazer parte do
cotidiano das pessoas e se torna não apenas útil para a regulação dos tempos
do cotidiano de trabalho fabril, mas também objeto de prestígio para aqueles que
o detinham.
Para Rosa (2019), o tempo possui um caráter cognitivo e normativo na sociedade,
com uma internalização social do tempo na personalidade das pessoas que o
vivenciam de determinada forma em seu contexto social e cultural. Dessa forma,
a percepção do tempo é fortemente influenciada pelos fatores culturais e sociais
de uma determinada sociedade.
Além disso, o ritmo e a velocidade das práticas cotidianas são diretamente
influenciados pelos modelos temporais coletivos e as exigências de
sincronização presentes na sociedade. Para manterem-se incluídos em uma
determinada sociedade, os indivíduos são obrigados a sincronizar suas ações
com estas convenções e a das outras pessoas com as quais interagem. Assim,
esta integração dos tempos pessoais cotidianos, o tempo de uma vida e o tempo
social do momento em que se vive é algo que necessita ser construído e,
portanto, é perpassado por questões de poder (Rosa, 2019).
As mudanças tecnológicas, principalmente ao longo do século XX e XXI, encurtaram
os prazos e as distâncias nas sociedades modernas, no entanto, a sensação de
12
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
uma falta de tempo para realizar tudo o que é necessário mantém-se cada vez
mais presente. Se na sociedade moderna a estrutura temporal possuía uma
característica linear, com um passado trazendo a um presente que certamente
guia para um futuro fixo, na alta modernidade este futuro é incerto e aberto. A
predominância é de uma concepção de tempo que se mantém constantemente
acelerado (Rosa, 2019).
Rosa (2019) ainda reflete sobre a noção de que “o tempo atual é um tempo de crise”
não ser algo recente. Entretanto, a percepção de uma certa aceleração do tempo
e da hisria começa a ser escrita pouco antes das Revoluções Francesa e
Industrial, no início da Modernidade. A aceleração do tempo constitui então, um
diagnóstico que se mantém até os dias de hoje no que diz respeito a uma
percepção de tempo. Um segundo diagnóstico é observado na fase avançada
da Modernidade, no fim do século XX, na forma de uma percepção de
cristalização do tempo, na qual nada relevante acontece, com o sentimento cada
vez maior de um tédio generalizado. Ambas as perspectivas podem ser
relacionadas às características adoecedoras, como a ansiedade e sobrecarga
na aceleração e a depressão na cristalização. Esta transformação acelerada da
vida faz com que as pessoas necessitem planejar a longo prazo sem ter uma
estabilidade que seja resistente ao tempo em que se apoiar.
Precarização do trabalho no contexto neoliberal em Pierre Dardot e Christian
Laval (2016)
A dimensão do trabalho no século XXI é diferente em muitos aspectos da relação de
trabalho das fábricas da Revolução Industrial apresentada por Marx. São novas
formas de trabalho em que, no entanto, mantém-se a lógica capitalista de
13
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
transformar o trabalhador como apenas uma engrenagem de um sistema maior.
Enquanto o homem moderno liberal vivia no trabalho um contexto de uma
“cultura da empresa”, ao homem neoliberal apresenta-se a empresa enquanto
um governo de si mesmo” (Dardot e Laval, 2016). Esta transição ocorre,
segundo Dardot e Laval (2016: 329) no aumento da precariedade das condições
de trabalho no antigo sistema:
A corrosão progressiva dos direitos ligados ao status de trabalhador, a insegurança
instilada pouco a pouco em todos os assalariados pelas "novas formas de
emprego" precárias, provisórias e temporárias, as facilidades cada vez maiores
para demitir e a diminuição do poder de compra até o empobrecimento de
frações inteiras das classes populares são elementos que produziram um
aumento considerável do grau de dependência dos trabalhadores com relação
aos empregadores. Foi esse contexto de medo social que facilitou a implantação
da neo gestão nas empresas. Nesse sentido, a "naturalização" do risco no
discurso neoliberal e a exposição cada vez mais direta dos assalariados às
flutuações do mercado, pela diminuição das proteções e das solidariedades
coletivas, são apenas duas faces de uma mesma moeda. Transferindo os riscos
para os assalariados, produzindo o aumento da sensação de risco, as empresas
puderam exigir deles disponibilidade e comprometimento muito maiores (Dardot
e Laval, 2016: 329).
Na condição de "empresa de si mesmo" a responsabilidade pela valorização de seu
trabalho é inteira do indivíduo e torna-se um princípio absoluto no neoliberalismo.
Assim, toda atividade realizada pelo indivíduo converte-se em um "processo de
valorização do eu", na medida que todas as esferas de sua vida compõem a
14
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
empresa que é ele mesmo e a sua valorização implica consequentemente a
valorização da si enquanto empresa no mercado e uma integração entre a vida
pessoal e a profissional, que se fundem (Dardot e Laval, 2016).
Nesse sentido, técnicas que visam o melhor "domínio de si mesmo", como o coaching,
proliferam. Estas técnicas, por meio de diferentes metodologias, visam fortalecer
este eu-empresa de maneira a adaptá-lo à realidade, controlar emoções,
prepará-lo para lidar com problemas e com a certeza das mudanças contínuas.
Entretanto, todas estas cnicas para a transformação e melhoramento de se
colocam no indivíduo a responsabilidade pela competição e pela complexidade
do mundo do trabalho neoliberal (Dardot e Laval, 2016).
Assim, a novidade do neoliberalismo é a capacidade de fazer os indivíduos
suportarem as novas condições de trabalho impostas de forma que contribuam
para manter cada vez mais essas condições presentes. Isso produz uma reação
em cadeia de sujeitos empreendedores que reforçam a competição entre si em
um processo autorrealizador: os sujeitos precisam se adaptar às condições cada
vez mais duras que eles mesmos produziram (Dardot e Laval, 2016). Nesta
dimensão, a relação com o tempo torna-se ainda mais expressiva do que no
homem moderno, com a utilização de todo o tempo disponível para um trabalho
que também se transforma em cada vez mais precário.
Além disso, Dardot e Laval (2016) salientam que o estado de ser empresa de si implica
na constância do risco. Este risco passa a ser muito menos um risco social de
uma política de Estado e cada vez mais associado ao indivíduo no exercício de
suas liberdades ilimitadas. Dessa forma, o indivíduo é responsável tanto pelo
risco quanto pela cobertura dele. O acesso e compartilhamento de informações
surge então como um elemento agravante: a partir do momento que esta pessoa
pode acessar todas as informações necessárias, supõem-se que ela é
15
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
totalmente responsável pelos riscos de seus atos e de suas escolhas. Em uma
permanência do processo de escolhas, o indiduo torna-se constantemente
avaliável (Dardot e Laval, 2016). Todas estas características geram,
consequentemente, uma constante provação do próprio valor e a necessidade
de um alto desempenho que produz efeitos patológicos. Dardot e Laval (2016)
citam como diagnósticos o sofrimento no trabalho e a autonomia contrariada, a
corrosão da personalidade, a desmoralização e a depressão generalizada.
Considerações finais
O desenvolvimento da dinâmica de trabalho industrial foi perpassado pela introdução
da maquinaria, que alterou completamente o ritmo de produção não apenas pela
quantidade de peças produzidas, mas também pelo curto tempo em que este
processo ocorria. Marx (1975) explorou todo o funcionamento das fábricas no
Capital e afirma que, ao contrário do que muitos pensavam, a inserção das
máquinas e inovações tecnológicas nas fábricas não causaria uma diminuição
no tempo de trabalho dos trabalhadores. Pelo contrário, consistia em uma nova
forma de exploração, na qual se produzia muito mais que antes.
Estas novas máquinas demandavam tamm um sistema de disciplina do trabalhador
que não existia antes da Revolução Industrial. Os trabalhadores tiveram que
adaptar toda a sua vida em torno do tempo de funcionamento das máquinas e
aos horários das fábricas, de forma a gerar uma nova relação cultural com o
tempo. Conforme o capitalismo se estabelecia, essa nova relação com o tempo
foi se incorporando cada vez mais na vida dos trabalhadores, mantendo
marcadas as divisões entre o tempo de trabalho e o tempo para viver a vida.
16
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
A partir deste desenvolvimento histórico do trabalho no sistema capitalista e a forma
como este se apropriou do controle do tempo, reflete-se como a relação com o
tempo na sociedade do século XXI foi desenvolvida. As necessidades de
sincronização tomam novas formas na sociedade mediada pela tecnologia em
que tudo parece estar acelerado demais e as escolhas de utilização do tempo
presente são influenciadas por uma falta de perspectiva de uma estabilidade
futura.
Neste contexto, observa-se como as novas relações de trabalho exploram e
incorporam esta atual relação com o tempo entre os trabalhadores. O
neoliberalismo extrapola a relação do “tempo é dinheiro” no tempo do trabalho
para uma relação de um eu-empresa que se mantem constantemente
trabalhando. Seja por necessidade em um sistema que torna cada vez mais
precárias as condições de trabalho, salário e direitos; seja pela construção de
uma imagem de auto melhoria permanente visando uma produtividade elevada.
A situação dos jovens trabalhadores do novo milênio é única visto que muitas destas
mudanças aconteceram ao longo do seu tempo de vida. Estes jovens que estão
hoje adentrando no mercado de trabalho receberam uma educação pautada na
modernidade liberal anterior, com seus cartões-ponto, controle restrito de horas
trabalhadas e não-trabalhadas, direitos trabalhistas e longos tempos de carreira
na mesma empresa. O mercado que vivenciam é, no entanto, muito diferente. A
perspectiva sedutora de um controle do próprio tempo apresentada pelo
neoliberalismo acaba voltando-se contra os trabalhadores na forma de uma
precarização que, em muitos casos, torna-se tão internalizada que não é
percebida de imediato, ou, ainda, estimulada.
Portanto, destaca-se a importância da análise da relação das pessoas com o tempo,
visto o impacto que este teve ao longo do desenvolvimento do sistema
17
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
capitalista. Atualmente, a dimensão do tempo se mantém como fator de suma
importância nas relações de trabalho, visto a desintegração dos limites entre
trabalho e vida pessoal que constituem o discurso neoliberal. Além da
precarização do trabalho, esse contínuo sentimento de acelerão tamm gera
diversas ansiedades e patologias que vem sendo cada vez mais comuns nas
dimensões sociais e culturais da atualidade.
Referências Bibliográficas
Antunes, R. (2009), Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negão
do trabalho, São Paulo, Boitempo.
Dardot, P., e Laval, C. (2016), “A fábrica do sujeito neoliberal” in P. Dardot e C. Laval,
A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (pp. 321-376), São
Paulo, Boitempo.
De Decca, E. S. (1995), O nascimento das fábricas, São Paulo, Brasil.
Engels, F. (1977), “Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em
Homemin K. Marx & F. Engels, Textos (pp. 61-74), São Paulo, Edições Sociais.
González Rey, F. (2009), O social na psicologia e a psicologia social: A emergência
do sujeito, São Paulo, Editora Vozes.
Harvey, D. (2018), A loucura da razão econômica: Marx e o capital no culo XXI, São
Paulo, Boitempo.
Marx, K. (1975), O capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
Rosa, H. (2019), Introdução”. In H. Rosa, Aceleração: a transformação das estruturas
temporais na modernidade (pp. 1-43), São Paulo, UNESP.
18
Revista Redes 51 ISSN 1851-7072
Thompson, E. P. (1998), Costumes em comum, São Paulo, Cia. das Letras.
Artículo recibido el 23 de junio de 2020
Aprobado para su publicación el 10 de noviembre de 2020