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DOI: https://doi.org/10.48160/18517072re52.102
A Teoria Ator-Rede aplicada às Tecnologias
Sociais: construindo redes sem pontos de passagem
obrigatórios
Bruno Rossi Lorenzi
*
Rafael de Britto Dias
**
Thales Haddad Novaes de Andrade
***
Resumo
O presente artigo apresenta um conjunto de reflexões acerca da aplicação da
Teoria Ator-Rede (TAR) em casos estudados de tecnologias sociais,
compreendidas como intervenções sociotécnicas envolvendo indivíduos, grupos
ou comunidades em contextos de produção de conhecimento e tecnologias
orientados à promoção da inclusão social. Buscamos, aqui, mostrar como a TAR
pode ser útil no estudo de experiências dessa natureza e contribuir, assim, para
*
Programa de Ciência, Tecnologia e Sociedade Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Correo electrónico: brunolorenzi@gmail.com
**
Faculdade de Ciências Aplicadas da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Correo electrónico: rbdias@unicamp.br
***
Departamento de Ciências Social da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Correo electrónico: thaleshnandrade@gmail.com
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a análise de tecnologias sociais. Além disso, o artigo tem como objetivo apontar
os limites da TAR quando se analisa tecnologias sociais, especialmente nos
casos que se enquadram nos princípios da Adequação Sociotécnica e visam a
autonomia dos usuários. Por fim, propomos ajustes conceituais que deem conta
dessas limitações e contribuam para a análise de tecnologias sociais, como o
conceito de caixa-aberta e ponto de passagem não-obrigatório. Esperamos que
com isso a TAR possa ser utilizada com mais frequência na análise de
Tecnologias Sociais e Inovações Inclusivas, que as suas limitações são em
grande medida superadas com a adoção desses ajustes.
Palavras-chave
TEORIA ATOR-REDE, TECNOLOGIA SOCIAL, ADEQUAÇÃO SOCIOTÉCNICA, ESTUDOS DE
CIÊNCIA E TECNOLOGIA.
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Introdução
A reflexão proposta nesse artigo visa repensar os conceitos da Teoria
Ator-Rede (TAR) quando aplicados a estudos de casos de tecnologias sociais
(TS), assim como refletir sobre os limites dessa teoria nesses casos e propor
ajustes conceituais, pertinentes a este e possivelmente outros contextos. A
justificativa para essa reflexão é de que, como iremos demonstrar, as tecnologias
sociais não correspondem em termos de concepção, processo de construção
e resultados à forma como os autores da Teoria Ator-Rede pensaram o fazer
científico e a tecnológico em geral tendo sempre a tecnologia convencional em
mente. Isso implica a necessidade de refletir sobre os limites da TAR e a
construção de ajustes conceituais que deem conta dessas modalidades
tecnológicas.
Para isso, primeiramente apresentaremos algumas reflexões sobre o
conceito de tecnologia social, trazendo um breve histórico do assunto, seus
principais autores e recentes debates. Embora sejam conceitos distintos,
aproximações possíveis entre eles, as quais dialogam com os elementos que
destacamos na interpretação que aqui propomos. Nessa seção, tamm
abordaremos o conceito de Adequação Sociotécnica (AST), o qual utilizamos
para qualificar as tecnologias sociais em questão e para dialogar com as noções
que vamos propor a partir da TAR. Em seguida, apresentaremos alguns casos
de tecnologias sociais estudados por outros autores que trazem apontamentos
sobre os aspectos da teoria ator-rede que pretendemos debater e como a TAR
pode contribuir para a análise de tecnologias sociais. Por fim, fazemos uma
reflexão a respeito das limitações da TAR quando aplicada a estudos de
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tecnologias sociais e buscamos aproximar as ferramentas analíticas
consolidadas pela TAR a esses novos contextos, sugerindo alterações em
conceitos já largamente difundidos e utilizados em análises de tecnologias mais
convencionais.
A reflexão que se faz, parte especialmente dos conceitos de ponto de
passagem obrigatório (Callon, 1986) e de caixa-preta (Latour, 2000). Como
iremos debater, esses conceitos nos parecem perfeitamente adequados quando
analisamos tecnologias convencionais, como os produtos da indústria voltados
ao mercado consumidor, tecnologias patenteadas, máquinas utilizadas no setor
produtivo e de serviços, etc. Porém, não se mostram tão eficazes quando temos
em mente uma tecnologia social, que é projetada não para o mercado
consumidor convencional, mas sim para projetos de economia solidária,
empreendimentos autogestionários ou simplesmente para resolver problemas
específicos da população mais vulnerável.
Essa tensão se torna ainda mais visível quando pensamos em TS que se
enquadram nos princípios da AST, já que esta perspectiva prioriza a atuação
conjunta entre engenheiros, cientistas e usuários, a propriedade coletiva dos
meios de produção e a apropriação libertadora do conhecimento e das
tecnologias desenvolvidas coletivamente nessas experiências, que visam gerar
renda e autonomia aos seus usuários. Dessa forma, é impensável, dentro dessa
perspectiva, que se desenvolvam tecnologias que se enquadrem no conceito de
caixa-preta e ponto de passagem obrigatório, ou seja, tecnologias cujo
funcionamento é desconhecido pelos usuários finais, protegido com direitos
autorais, mantido em segredo e que vise controle sobre os usuário e produtores.
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Haveria um descompasso entre os princípios da AST e as formulações
teóricas da TAR que precisa ser melhor debatido.
Essa questão, que desenvolveremos com mais detalhes e profundidade
ao longo do texto, nos parece relevante para que se proponha ajustes
conceituais que deem conta das experiências associadas às TS e AST se
quisermos continuar utilizando a TAR em estudos de caso desse tipo, como as
noções de “caixa-aberta” e “ponto de passagem não-obrigatório”, que
apresentamos no final da discussão.
Tecnologias Sociais: histórico e relevância atual
As tecnologias sociais (TS) são um tipo de tecnologia adaptada,
principalmente para o uso em comunidades com baixa renda, por pequenos
produtores ou em empreendimentos auto-gestionários. Essas tecnologias são
pensadas e desenhadas para resolver problemas sociais e ambientais, de
preferência em conjunto com os próprios usuários (que se tornam, efetivamente,
usuários-produtores), o que possibilita maior integração da comunidade desde a
sua concepção, permitindo que os próprios usuários deem manutenção e
aperfeiçoem esses artefatos ou sistemas (Thomas, Juarez e Picabea, 2015).
Elas são mais facilmente compreendidas em contraposição às Tecnologias
Convencionais (TC) que, em geral, possuem as seguintes características
(Dagnino, 2014):
· Poupadora de mão-de-obra,
· Intensiva em capital,
· Grande em escala,
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· Hierarquizante,
· Segmentada (não permite o controle do produtor direto),
· Alienante (no sentido material e cognitivo),
· Ambientalmente insustentável,
· Economicamente não-distributiva (monopolista por excelência).
Em contraposição, as Tecnologias Sociais teriam como objetivo principal
não promover o controle e a exploração típicos das tecnologias
convencionais. Seriam, idealmente, pequenas em escala, de simples
funcionamento (ou compreensíveis para o produtor e o operador direto), não-
hierarquizante, intensiva em mão-de-obra, ambientalmente e socialmente
sustentáveis e, principalmente, capazes de viabilizar pequenas empresas e
empreendimentos coletivos e autogestionários, ou seja, competitivas ao mesmo
tempo em que libertam a capacidade física, criativa e financeira das pessoas
envolvidas (Thomas, 2012, Dagnino, 2014, Novaes y Dias, 2009).
O conceito de tecnologia social atualmente em uso surgiu como um
desdobramento e aperfeiçoamento da chamada Tecnologia Apropriada (TA),
primeiramente colocada em prática por Gandhi na década de 1910 na Índia (mas
sem utilizar esse termo), ao adaptar e melhorar as tecnologias utilizadas na
indústria têxtil, especialmente a roca de fiar, para o uso dentro das vilas e
comunidades, excluindo dessa forma o controle e a apropriação capitalista do
excedente (mais-valia), cunhando a expressão “produção pelas massas, o
produção em massa” (Herrera, 1983, Novaes y Dias, 2009).
Posteriormente, a ideia de Tecnologia Apropriada foi posta em prática em
outros lugares da Ásia e influenciaram o economista alemão Ernst Friedrich
Schumacher que, inspirado nessas práticas, desenvolveu o conceito de
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Tecnologia Intermediária em seu livro “Small is beautiful: economics as if people
mattered" lançado em 1973. Schumacher (1973) compartilhava com outros
autores, como Rachel Carson e os pensadores associados ao Clube de Roma”,
a ideia de que o uso intensivo de recursos naturais pelo modelo capitalista
vigente levaria ao seu esgotamento e, portanto, era insustentável. Ao mesmo
tempo, defendia que a tecnologia intensiva em capital era inapropriada aos
países subdesenvolvidos (ou de terceiro mundo na época) devido à grande
dependência desses países por importações de máquinas e tecnologias dos
países ricos para fins de produção ou, ainda, o seu consequente endividamento
financeiro. Defendia, portanto, o uso de tecnologias mais simples por esses
países, pequenas em escala, de baixo custo, intensivas em mão-de-obra e que
respeitasse a dimensão ambiental.
Apesar dos projetos sociais e planos de governo que os conceitos de
Tecnologia Apropriada e Tecnologia Intermediária incentivaram nas décadas de
1970 e 1980, houve pouco avanço em relação aos seus objetivos principais,
como diminuição da desigualdade e expansão dessas alternativas (Dagnino,
2008, Novaes y Dias, 2009). Uma das principais críticas que se faz ao movimento
da Tecnologia Apropriada é de que apesar de necessárias, essas iniciativas não
eram suficientes. Esses movimentos não questionavam a estrutura de poder
vigente e a distribuição desigual de riquezas, propondo apenas uma adaptação
ou simplificação com alteração de escala (downgrading) das tecnologias
produtivas, sem questionar o modo de produção capitalista e sua consequente
exploração. Ao criar oportunidades apenas de sobrevivência a trabalhadores
pouco qualificados ou desempregados, mas não de crescimento e diminuição de
desigualdade, a TA foi acusada de contribuir para o fortalecimento da gica
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capitalista ao criar condições para a manutenção da baixa remuneração e
marginalização social, atenuando o desemprego estrutural e reforçando,
portanto, a exploração capitalista (Herrera, 1983, Dagnino, 2014, Novaes e Dias,
2009).
Além disso, aqueles que pensavam a Tecnologia Apropriada muitas vezes
não levavam em conta o contexto em que a tecnologia convencional era gerada
e, portanto, a dificuldade em adaptá-la a outros contextos. Soma-se a isso o fato
de que o modelo de TA não altera a forma de produção e difusão de
conhecimento. Ao tentar adaptar tecnologias convencionais, permaneceria a
dependência tecnológica dos países desenvolvidos, das empresas de tecnologia
e do sistema acadêmico de pesquisa, excluindo os usuários finais da sua
concepção e construção e, portanto, mantendo a alienação tecnogica desses
atores (Novaes y Dias, 2009).
As tecnologias sociais na perspectiva da Adequação
Sociotécnica
Com o objetivo de superar as limitações do conceito de TA, já comentado
acima, alguns autores (Dagnino, Brandão e Novaes, 2004, Thomas, 2008)
desenvolveram o conceito de Adequação Sociotécnica (AST). A AST tem como
objetivo adequar a tecnologia convencional aos usos e interesses de
movimentos sociais, pequenos produtores e empreendimentos autogestionários,
por meio de um processo participativo de desconstrução e remodelação das
tecnologias produtivas, adaptando-as a essas iniciativas por meio do ajuste do
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processo de trabalho à propriedade coletiva dos meios de produção (sem a
hierarquia tradicional da empresa capitalista), divisão igualitária dos resultados
e autogestão. Além disso, a AST busca não somente converter a TC em TS, mas
tamm iniciar um processo de superação dessas tecnologias e das
organizações que as adotam, incluindo assim uma dimensão ou movimento que
não estava presente na TA.
Sendo assim, a AST inclui em seus fundamentos princípios como
incorporação de conhecimentos científico-tecnológicos existentes e também
de conhecimentos novos, gerados em parceria com universidades ou centros
públicos de pesquisa para o melhoramento das tecnologias e dos processos
empregados nesses empreendimentos. Com isso, além de promover o uso de
tecnologias mais solidárias, voltadas à socialização dos ganhos (Dagnino, 2019),
a AST não fica presa aos conceitos de tecnologia simplificada da TA, visando,
ao contrário, a geração de inovações a partir da criação de novas tecnologias e
processos pensados desde o princípio na perspectiva da tecnologia social por
meio de parceria com as universidades públicas que são as principais
produtoras de ciência na América Latina (Dagnino, Brandão e Novaes, 2004).
É importante salientar que, na perspectiva da AST, as tecnologias sociais
não podem ser simplesmente importadas de um contexto para outro
significativamente distinto para serem então empregadas pelos movimentos
sociais ou empreendimentos autogestionários, pois isso não acabaria com a
dependência tecnológica desses movimentos.
Conforme apontado por Thomas (2012), a AST remete a um “processo
auto-organizado e interativo”, por meio do qual conhecimentos, artefatos e
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sistemas são integrados no âmbito de dinâmicas ou de trajetórias sociotécnicas
socio-historicamente situadas. Nesses contextos, conhecimentos e tecnologias
funcionam (ou não) em decorrência dos sentidos que vão sendo construídos
desde o estabelecimento das relações problema-solução e do desenho de
respostas para o seu tratamento. Ou seja, funcionamento e não funcionamento
não são resultados ex post da mobilização de certos conhecimentos e artefatos,
mas elementos constitutivos das próprias dinâmicas ou trajetórias sociotécnicas.
Nesse sentido, continua Thomas (2012), o funcionamento dos artefatos não
remete propriamente a suas características intrínsecas. Trata-se de um atributo
sociotecnicamente construído. Reflete problemas e soluções definidas e
negociadas por atores (inclusive pelos usuários), conformadas a partir de
arranjos sociotécnicos historicamente situados.
Essas reflexões são centrais para as reflexões que aqui propomos, uma
vez que apontam para as noções de adequação e funcionamento não como
resultados, mas como partes centrais da construção de estratégias para o
desenvolvimento de sistemas sociotécnicos orientados pela ideia de TS. Elas
sugerem que é preciso considerar as alianças sociotécnicas - “movimentos de
alinhamento e coordenação de elementos heterogêneos que “viabilizam ou
impedem a estabilização da adequão sociotécnica de uma tecnologia e da
atribuição de sentido de funcionamento” (Thomas, 2012). Em síntese, como
destacado por Thomas e Becerra (2020, p.38), o funcionamento de uma
tecnologia não tem a ver estritamente com o fato dela ser bem construída, mas
“porque se conecta bem com tudo o que existe previamente e porque alguns
grupos decisores participam no processo de construção de seu funcionamento”.
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Prosseguindo nessa linha, podemos afirmar que a TS é necessariamente
desenvolvida em conjunto com os movimentos sociais ou usuários finais, a partir
dos sentidos que atribuem, de forma a permitir a completa independência desses
grupos e o melhoramento e desenvolvimento dessas tecnologias por parte dos
envolvidos. Tecnologia Social, portanto, sempre está relacionada ao
envolvimento ativo de usuários-produtores no desenho e implementação das
soluções para os problemas de um dado local, quebrando, pois, a cisão entre
“produtores” e “usuários” ou “beneficiários” de conhecimentos, produtos ou
técnicas. A ativa participação dos usuários no processo de desenho das
tecnologias e das estratégias para seu desenvolvimento, favorecendo arranjos
hierárquicos mais horizontais, é fundamental para o sucesso de experiências
apoiadas na AST. Por sua importância e complexidade, é tamm um desafio
central na constituição de alianças heterogêneas que envolvam, por exemplo,
grupos de pesquisadores ligados a organizações de pesquisa tradicionais, de
um lado, e “usuários” (como comunidades, pequenos produtores e cooperativas
de trabalho), de outro (Fressoli et al, 2013).
Ainda sobre as tecnologias sociais e a Adequação Sociotécnica, Hernán
Thomas (2008, 2012) estabelece quatro aspectos fundamentais de qualquer
tecnologia social. São eles:
a) Aspectos político-institucionais: relativos à implementação e gestão do
projeto, como os programas aos quais ela está vinculada, se é uma
iniciativa pública ou delegada a terceiros, etc.
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b) Aspectos sócio-institucionais: relacionados à participação, gestão e
tomada de decisões do projeto. Isso implica avaliar se existem, por
exemplo, espaços e estrutura para tomada de decisões e participação, se
são os próprios usuários que realizam essas atividades (ou não), de que
forma, etc.
c) Aspectos socioculturais: todo projeto ou TS deve estar em harmonia com
a cultura e os valores locais para funcionar adequadamente. Isso significa
que devemos avaliar se os usuários aceitam ou estranham essas
tecnologias, se tem ressalvas, medos, ou se aquilo se incorpora de fato às
suas vidas e comunidades, tornando-se parte integrante do seu dia-a-dia.
d) Aspectos tecno-cognitivos: Implica avaliar se as soluções técnicas
empreendidas foram adequadamente entendidas pelos usuários e se eles
são capazes, por exemplo, de operar os artefatos, dar manutenção, propor
melhorias e reproduzi-los em outros locais.
Para avaliar esses aspectos, Thomas (2008, 2012) diferencia dois tipos
ideais de Tecnologias sociais: a Tecnologia Apropriada (TA) correspondentes
às primeiras tecnologias sociais, pensadas de cima para baixo, para resolver
problemas muito pontuais e sem grande integração e participação da
comunidade -, e a Adequação Sociotécnica (AST), conceito que apresenta uma
grande evolução em relação à TA. Essas diferenças se expressam em níveis
cognitivos, socioeconômicos e políticos. Ao pensar a tecnologia no seio de uma
determinada comunidade, em conjunto com os usuários, a AST criaria um
processo endógeno de concepção e uso (ao invés de simplesmente importa-la
de outro lugar), que inclui múltiplos saberes e perspectivas (plural), aperfeiçoada
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continuamente (não-linear), que se integra na comunidade socialmente e
economicamente (sistêmica), de coordenação coletiva (horizontal) e voltada
para a autonomia de seus usuários e geração de dinâmicas socioeconômicas
libertadoras (Thomas, 2008, 2012).
Outro aspecto importante que deve ser levado em consideração quando
pensamos em TS se refere à integração das tecnologias entre si e com a
comunidade. Segundo Jesus e Bagattolli (2013), existem três tipos ou níveis de
TS que podem ser integradas: 1) tecnologias voltadas às necessidades básicas,
como saneamento, fornecimento de água, energia, moradia, saúde, etc, 2)
tecnologias de geração de renda, como técnicas agroecológicas ou que
melhorem a produtividade do trabalho, e por fim, 3) tecnologias articuladas, que
conectam o projeto a outras instituições e setores, como programas
governamentais, bancos comunitários, economia solidária, empresas
autogestionárias, etc, gerando dinâmicas socioeconômicas complexas que vão
muito além da solução pontual de problemas. De fato, as tecnologias sociais
podem ser organizadas de modo a produzir mudanças mais amplas, como parte
de redes sociotécnicas amplas capazes de reorganizar não apenas as formas
de produção, mas também outras dimensões da vida nas comunidades.
É possível também desenvolver sistemas híbridos, ou seja, artefatos
tecnológicos que não foram desenhados coletivamente, sendo originalmente
uma tecnologia convencional, mas que passam a ser incorporados e autogeridos
pela comunidade local, como foi, por exemplo, o caso do Programa Água Doce,
que resgatou e revitalizou dessa forma o antigo programa de dessalinização do
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Semiárido (Programa Água Boa), antes abandonado devido a diversos
problemas técnicos e de gestão (Costa e Abreu, 2013).
Em que pese o fato de as Tecnologias Sociais poderem eventualmente
visar a geração de lucro aos seus participantes (afinal, necessita ser viável como
todo empreendimento para funcionar e poder repartir os ganhos), essa
motivação é geralmente secundária, sendo seu objetivo fundamental a
transformação da realidade social em determinado contexto. Além disso, os
meios para a sua concepção e construção também são muito divergentes da TC,
orientados para a conscientização e participação material e intelectual de todos
os seus membros. Portanto, o processo e resultado são muito diferentes do
convencional.
Dessa forma, devemos nos perguntar se os estudos sociais sobre a ciência
e a tecnologia desenvolvidos nas últimas décadas sempre focados nos grupos
e na forma convencional de se gerar tecnologia dão conta de explicar as
tecnologias sociais e suas implicações. Para isso, primeiro precisamos retomar
como esses estudos contribuíram para o nosso entendimento do processo
científico e tecnológico para depois explorar seus limites.
Contribuições dos ESCT e da TAR para a análise de
tecnologias sociais
Os estudos sociais da ciência e da tecnologia (ESCT), em especial o
construtivismo social, têm demonstrado ao longo dos últimos 40 anos que a
ciências e a tecnologias o são neutras ou imparciais, ao contrário, são
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completamente dependentes de instituições e grupos externos ao ambiente
laboratorial, orientados por valores sociais e políticos de seus participantes e
contribuidores, e, ainda, repletas de controvérsias, disputas e indefinições, como
qualquer outra atividade social. Dessa forma, a ciências e a tecnologias não
evoluiriam necessariamente orientadas por um tipo de desenvolvimento
tecnológico e social meta-historicamente determinado (correspondente à visão
canônica de ciência e tecnologia e das teorias econômicas usuais), ao contrário,
possui seu horizonte aberto a questões e soluções social e politicamente
negociadas (Dagnino, 2008).
Para exemplificar, vamos retomar alguns estudos que ficaram famosos na
área explorando essas questões. Em sua análise histórica sobre o
desenvolvimento e design das bicicletas em seus primórdios, inspirados na
sociologia simétrica de David Bloor (1988) e no modelo teórico proposto por
Harry Collins (1981) para a análise de controvérsias científicas (The Empirical
Programme of Relativism EPOR), Pinch e Bjiker (1987) propõem um modelo
similar para a tecnologia, que dão o nome de Social Construction of Technology
(SCOT). Nesse modelo, multidirecional, os autores exploram as muitas
possibilidades e grande flexibilidade que o desenho e desenvolvimento de
artefatos tecnológicos possuem, assim como a importância de grupos sociais
considerados relevantes e como os valores e costumes da época são decisivos
nas escolhas e soluções adotadas no design desses artefatos. Como os autores
demonstram no caso das bicicletas, aspectos como o material dos pneus, uso
de marchas, freios, altura das rodas, etc, que poderiam ter se desenvolvido numa
infinidade de direções, apontadas através dos projetos e protótipos recuperados
no estudo, foram sendo definidos ao longo do tempo a partir dos valores, usos e
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opiniões dos grupos sociais considerados relevantes na época. Dessa forma, os
autores fazem uma grande contribuição à visão da tecnologia enquanto uma
construção socialmente negociada e não determinista, o que é fundamental,
tamm, para o conceito de Tecnologia Social.
As contribuições do historiador da tecnologia Thomas Hughes (1993,
[1983]) também são fundamentais nesse sentido, podendo ser considerado um
dos pioneiros nessa perspectiva ao demonstrar que a formação de sistemas
tecnológicos bem sucedidos, como os sistemas de eletricidade, dependiam da
concatenação de elementos de diferentes naturezas, tanto sociais (envolvendo
pessoas, empresas, políticas, regulamentações, economia, etc), quanto de
elementos técnicos (transformadores, correntes, formato de geração e
distribuição, etc), criando a expressão “teia sem costuras” (seamless web) para
fazer analogia a esses sistemas que imbricam elementos heterogêneos entre si,
mas que possuem grande flexibilidade e vão se transformando com o tempo (ou
seja, não são fixos ou determinados). Entre muitas outras coisas, esses autores
demonstraram o caráter heterogêneo, coletivo, negociado e, portanto,
sociotécnico das tecnologias modernas.
Mais ou menos na mesma época (década de 1980), Collins e Pinch (2003)
iniciam uma série de diversas etnografias de laboratório e estudos de caso junto
a cientistas de diversas áreas explorando em especial as controvérsias
científicas. Os autores analisam diversas questões que foram polêmicas na
época de seu surgimento, como transferência de memória, teoria da relatividade,
ondas gravitacionais, detecção de neutrinos, a fusão a frio, entre outras, e
apontam como todas elas envolviam muitas controrsias e, pelo menos durante
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o período anterior ao consenso da maioria da comunidade científica, o mesmo
problema poderia ter diferentes soluções e conclusões. A partir desses casos,
Collins e Pinch demonstram como a construção do consenso vai muito além dos
fatos, que são em grande medida subjetivos e abertos à interpretação. Mesmo
os experimentos científicos e replicações por pares considerados exatos e
imparciais por grande parte dos cientistas e na visão canônica da ciência estão
sujeitos em grande medida a escolhas, interpretações e opiniões dos cientistas,
além da enorme dificuldade em se replicar qualquer experimento e ter ele
reconhecido pelos pares, dependendo muito do grau de confiaa atribuído a
quem fala.
Em outra obra (Collins y Pinch, 2016), os autores também demonstram,
através de estudos de casos envolvendo artefatos tecnológicos diversos como
o desenvolvimento de mísseis teleguiados, a explosão do ônibus espacial
Challenger, desenvolvimento de tratamentos para a AIDS, entre outros -, como
o desenvolvimento e uso de tecnologias também são permeados pelas mesmas
questões, como controvérsias, incertezas, dificuldade em se replicar um
experimento e até mesmo explicar o seu funcionamento, o que mostra como
muitas vezes as tecnologias são feitas a partir de tentativa e erro. Todos esses
casos estudados pelos autores contribuem com os ESCT na medida em que
demonstram como a ciência e a tecnologia não são neutras e imparciais
1
, mas
1
- Nesse sentido e num grau muito mais radical, alguns autores (Feenberg, 2002, Winner, 1985,
Dagnino, 2014) afirmam que a escolha entre alternativas técnicas não leva em consideração
somente critérios técnicos e sociais, mas também políticos. Ao adotar uma tecnologia ou
introduzir uma inovação, o capitalista não estaria apenas buscando somente a acumulação de
capital e extração de mais-valia relativa, mas também buscando um maior controle sobre o
processo de trabalho, alienando ainda mais o trabalhador ou excluindo uma parcela da
população do uso de determinadas tecnologias e consequentemente participação em arranjos
sociais específicos.
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sim permeadas de disputas, negociações, controvérsias e incertezas, o que é
fundamental para a desconstrução da visão determinista de ciência e tecnologia
em que as TC se apoiam.
Em convergência com esses estudos, para a TAR também é essencial
observarmos as negociações, adaptações, discursos, ressignificações, disputas,
etc (que os autores vão chamar de movimentos de translação ou tradução) se
quisermos compreender como as redes sociotécnicas se formam e funcionam.
E para isso, a forma mais eficaz, segundo os seus autores, seria acompanhando
as controvérsias que se dão ao longo desse processo (que aparecem em
praticamente todos os casos se analisados com atenção), pois é quando esses
movimentos e elementos técnicos aparecem com mais clareza para o analista,
explicitando as entranhas de uma rede com todos os seus elementos, nós soltos,
disputas, interesses, indefinições e incertezas (Latour, 2000, 2012, Callon, 1986,
1987, Law, 1986, 2003).
Latour (1994, 2000, 2001, 2012) traz grandes contribuições ao tema, na
medida em que seus estudos demonstram a enorme interdependência das
organizações científicas e tecnológicas com outras organizações e instituições,
como empresas, órgãos de governo, políticas públicas, mas também dos atores
não-humanos. Ou seja, para a TAR, devemos tratar natureza e sociedade,
humanos e não-humanos de forma simétrica. Isso significa levar em
consideração esses dois tipos de atores na hora de se fazer uma análise, sem
atribuir mais ou menos importância a algum desses “polos”. Para Latour (1994)
os processos científicos e tecnológicos se dariam justamente entre esses dois
extremos, através da combinação de elementos humanos e o-humanos,
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“sociais” e “naturais”, políticos e técnicos (daí também um dos sentidos de
“mediação”, as vezes utilizado como sinônimo de tradução).
Para a TAR, todo ator é em si um “ator-rede”. Isso quer dizer que nenhum
ator age sozinho, há sempre uma rede de atores conectada a este ator, dando-
lhe apoio, legitimidade, poder, influenciando suas ações, etc. Como Law (1999)
aponta, os atores são na verdade efeitos da rede. Ou ainda, “uma rede de atores
é simultaneamente um ator, cuja atividade consiste em fazer alianças com novos
elementos, e uma rede, capaz de redefinir a transformar seus componentes”
(Callon, 1987, p. 93). Segundo Latour, “O ‘ator’, na expressão hifenizada ‘ator-
rede’, não é a fonte de um ato e sim o alvo móvel de um amplo conjunto de
entidades que enxameiam em sua direção” (Latour, 2012, p. 75). Ao mesmo
tempo, essa rede existe enquanto um movimento, circulação de atores e
ações ou, “mediações”.
É importante salientar que para Latour (1994; 2000; 2012) não existem as
tais entidades sociedade” (palco da política, representações, linguagem,
disputas, interesses, etc) e “natureza” (lugar das “coisas-em-si”, objeto por
excelência das ciências, lugar separado das representações humanas onde as
coisas existem e seguem leis independentes da nossa vontade). Segundo o
autor, essas entidades não passam de representações criadas pelos modernos
como resultado de um processo de idealização e purificação dos fenômenos. Na
prática, tudo seria resultado de uma intensa mistura entre pessoas, interesses,
conhecimentos, atores não-humanos, disputas, padronizações, representações,
tecnologias, etc. A esse processo, que envolve sempre uma combinação de
elementos heterogêneos, e que lentamente vai se estabilizando por meio das
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traduções (negociações, desvios, convencimento, alianças, etc), Latour o
nome de mediação. Como descrito por Law:
O “conhecimento”, portanto, é corporificado em rias formas materiais.
Mas de onde ele vem? A resposta da teoria ator-rede é que ele é o produto
final de muito trabalho no qual elementos heterogêneos tubos de ensaio,
reagentes, organismos, mãos habilidosas, microscópios eletrônicos,
monitores de radiação, outros cientistas, artigos, terminais de computador,
e tudo o mais os quais gostariam de ir-se embora por suas próprias contas,
são justapostos numa rede que supera suas resistências (Law, 2003: 2).
Em casos de sucesso, a rede em torno de um objeto ou objetivo vai
gradualmente se estabilizando e tomando forma na medida em que os interesses
dos diversos atores convergem em um ponto comum (como resultado de um
consenso ou de disputas), os problemas técnicos vão sendo superados (como
resultado da domesticação dos não-humanos) e as controvérsias são resolvidas
(ou abandonadas). Segundo Latour (2000), essa convergência de interesses e
aliaas com atores humanos e não-humanos (cujo um termo melhor, segundo
os autores, seria simplesmente “actantes”, que, mesmo humanos e não-
humanos estão sempre concatenados, nunca agindo independentemente) pode
ser visualizada na forma de uma caixa-preta
2
, ou seja, um conjunto de elementos
heterogêneos que são justapostos de maneira coesa e funcional, de forma a
superar as resistências e atuar como uma coisa só, disseminados na forma de
2
- Latour (2000) toma emprestado da cibernética o sentido que atribui ao seu conceito de caixa-
preta, onde um dispositivo cujo funcionamento é desconhecido ou irrelevante na esquematização
de um sistema é representado por uma caixinha-preta, importando somente as informações ou
ações que nela entra (input) e o que dela sai como resultado de suas operações (output).
21
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uma inovação tecnológica ou teoria científica. Porém, como o próprio nome diz,
quanto mais disseminado for esse artefato tecnológico ou teoria científica,
menos importa aos seus usuários o interior dessa caixa (portanto, preta). Desde
que funcione adequadamente, não haveria motivos para se investigar o seu
interior, o que contribui ainda mais com a sua disseminação e daria a impressão
de “autonomia dos fatos e tecnologias”. Segundo o próprio autor:
Quanto mais modernas e complexas as máquinas, maior o número de formulários de que
precisam para chegar a existir. A razão para isso é simples: no processo de construção,
elas vão sumindo de vista porque cada uma de suas peças oculta a outra à medida que
todas se vão transforando em caixas-pretas cada vez mais pretas (Latour, 2000: 412).
Portanto, caberia ao analista da TAR justamente abrir essas caixas-pretas,
ou seja, destrinchar o seu interior, identificar os seus elementos e o conjunto de
aliaas que amarra tudo isso junto. Para isso, o autor (Latour, 2000; 2012)
sugere que acompanhemos o próprio fechamento dessas caixas enquanto ainda
estão abertas, seguindo os movimentos e ações (translações) dos mobilizadores
desse ator-rede a partir das disputas e controvérsias, que tornam mais visíveis
esses movimentos devido ao seu teor de polemicidade.
O papel da relação usuário-produtor nas inovações tecnológicas tamm
foi explorado no âmbito dos ESCT. Em suas pesquisas no final dos anos 1970
sobre a inovação em diversos setores (semi-condutores, instrumentos
científicos, equipamentos eletrônicos, maquinário industrial, entre outros) Von
Hippel (1976, 1977, 1978, 2005) demonstrou que a participação dos usuários é
fundamental na geração de ideias para aperfeiçoamentos, modificações,
protótipos, novos produtos e processos, tendo em muitas áreas um papel
preponderante, contribuindo em mero de ideias que levam de fato à inovações
22
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muito mais que os produtores. Isso vai contra o pensamento tradicional sobre a
inovação, que pressupõe um processo linear que vai do produtor ao usuário.
Esses estudos relevam, portanto, a importância e potencial dos usuários no
processo de inovação até mesmo em tecnologias convencionais, o que reforça
ainda mais o papel dos usuários na perspectiva da tecnologia social e AST.
Esse modelo teórico, que envolve traduções e alianças com atores
humanos e não-humanos na forma de redes sociotécnicas, pode ser utilizado
tanto para analisar a construção e funcionamento de tecnologias convencionais,
como de tecnologias sociais. Por exemplo, o desenvolvimento e sucesso de uma
tecnologia convencional, como um smartphone novo, precisa de pesquisadores,
desenvolvedores, funcionários (organizados hierarquicamente), investidores,
máquinas para a produção, marketing, além de atores não-humanos, como a
tela sensível ao toque, processadores, memórias, sensores, etc. Tudo isso
precisa estar justaposto de maneira funcional, de forma a intensificar a sua
disseminação.
Da mesma forma, as tecnologias sociais necessitam de uma rede sólida e
heterogênea para funcionarem e se popularizarem. Tomando o Programa Um
Milhão de Cisternas (P1MC) como exemplo, que visa instalar cisternas nas
regiões áridas brasileiras para coletar a água da chuva, tal projeto necessita de
coletores, reservatórios, encanamentos, materiais, além de financiamento
público, pessoal para instruir e dar o treinamento aos usuários, uma rede de
distribuição dos materiais e das técnicas, etc (Dias, 2013). Dessa forma, tanto o
problema quanto a solução o sociotécnicos, exigindo que se pense em
soluções que contemplem o problema tanto de forma técnica, utilizando
23
Revista Redes 52 ISSN 1851-7072
materiais baratos, acessíveis e funcionais, mas também valorize o conhecimento
local, perceba o problema de forma situada e tenha apoio de outras entidades
ou programas do governo para poder ter sucesso em uma escala ampliada
portanto, é uma solução cnica que necessariamente envolve política e
sociedade. Mas se que os casos de TS bem sucedidos correspondem ao
conceito de caixa-preta ou precisamos fazer alguns ajustes na teoria nesses
casos?
Os limites da TAR para a análise de tecnologias sociais
Em seus estudos de casos de tecnologias sociais implementadas em
países da África (gerador de energia e painel fotoetrico), Akrich (1992) propõe
que os artefatos tecnológicos de forma geral possuem um script, ou seja, um
roteiro ou programa que orienta os usuários sobre para o que serve aquele
artefato e como ele deve ser utilizado. Apesar de esse script ter sua faceta mais
óbvia na forma muitas vezes de manuais de instruções e termos de garantia, o
script não se resume a isso. A maior parte dos artefatos tecnológicos são
pensados e desenhados (design) de forma a limitar seu uso pelos usuários a
aplicações específicas pensadas pelos produtores, que dificultam e tentam
impedir, em muitos casos, o máximo possível a sua modificação pelos usuários
finais.
No caso estudado pela autora, do kit de luz fotoelétrico, desenvolvido na
França para ser utilizado em regiões pobres e sem iluminação ou eletricidade na
África, Akirch (1992) mostra como tudo no desenho da tecnologia foi pensado
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Revista Redes 52 ISSN 1851-7072
para tentar evitar ao máximo que os usuários finais modificassem ou mesmo
fizessem a própria instalação e manutenção do dispositivo, como o tamanho
reduzido dos fios, ausência de um interruptor remoto, uso da corrente contínua
(para evitar seu uso em outras redes), etc. Mesmo tratando-se de uma tecnologia
social, tudo foi projetado para evitar a interferência e modificações pelos
usuários, que são tratados pelas empresas, a maior parte das vezes, como leigos
e incapazes. Porém, mesmo com todos esses cuidados, ainda assim os usuários
finais conseguiram modificar o conjunto e apli-lo em outras finalidades.
As chamadas “gambiarras” (Boufleur, 2007, Gauntlett, 2011) são o
exemplo perfeito do que Akrich (1992) chama de de-scription (algo como uma
des-roteirização ou reprogramação), ou seja, a capacidade, necessidade ou
vontade que as pessoas têm de subverter o script imposto pelos produtores. A
autora, que parte de uma perspectiva da teoria ator-rede, enfatiza a necessidade
do sociólogo ou analista de levar em consideração tanto os atores humanos e
não-humanos dentro de uma caixa-preta, como também de transitar entre o
interior e o exterior dessa caixa, ou seja, de refletir sobres as relações que se
formam não durante o fechamento das caixas-pretas, mas também após o
seu fechamento e estabilização, demonstrando como a estabilidade de um
artefato tecnológico é apenas um momento do processo (talvez o mais
importante para os produtores de tecnologias convencionais), mas que nada
impede que sejam desestabilizados posteriormente e reinventados, formando
novas associações e conjugando novos actantes a essa rede.
O uso de gambiarras tamm pode ser de grande utilidade para o avanço
de estratégias de desenvolvimento de tecnologias sociais, como, por exemplo, o
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Revista Redes 52 ISSN 1851-7072
caso do sistema inventado por Paulo Lenhardt para abastecer automóveis e
tratores com óleo vegetal usado, em veículos que podem ser facilmente
modificados pelos próprios usuários (Silva y Peron, 2011). A Rede Honey Bee
na Índia tamm reúne centenas de exemplos de experiências premiadas ou
bem-sucedidas algumas das quais tornaram-se produtos de grande sucesso,
como a geladeira que não utiliza eletricidade
3
que nasceram a partir de
gambiarras criadas pelas próprias pessoas nos mais variados lugares, muitas
vezes de extrema pobreza e exclusão social (Fressoli et al, 2014). Portanto, as
gambiarras são exemplos claros de transgressões ao script (de-scription) que
extrapolam a caixa-preta e podem ser utilizadas de forma positiva para se
produzir tecnologias sociais.
Além disso, tanto as gambiarras quanto as tecnologias sociais o
exemplos de casos em que a TAR e seus conceitos o úteis, porém,
insuficientes para explicar os casos em que a tecnologia é pensada desde o
princípio para não ser fechada e roteirizada (como as tecnologias sociais e
programas de código aberto
4
), em casos em que as tecnologias são
desestabilizadas e modificadas de forma a proporcionar novos usos (como no
caso da Adequação Sociotécnica e das gambiarras), ou ainda quando se cria
artefatos completamente novos a partir da combinação de tecnologias existentes
modificadas pelos usuários e novos mecanismos.
3
- MittiCool Clay Refrigerator, disponível em: https://mitticool.com/products/mitticool-clay-
refrigerator50-liter, acesso em 07/04/2021.
4
- Assim como as tecnologias sociais são concebidas idealmente para resultar em artefatos ou
sistemas que tenham seu entendimento, modificação, aperfeiçoamento e reprodução abertos e
acessíveis para seus usuários e público em geral, os softwares em código aberto que nãoo
criptografados ou protegidos também são pensados para serem desenvolvidos coletivamente
e livremente por qualquer interessado (Pearce, 2012). Isso os torna semelhantes às tecnologias
sociais.
26
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Em outro estudo de caso de uma tecnologia social, no caso a “bomba
bush do tipo B” no Zimbabwe (de Laet y Mol, 2000), as autoras exploram a noção
de fluidez, demonstrando como nesse caso (e possivelmente outros casos
semelhantes) a ausência de limites rígidos quanto à construção e utilização de
um artefato é mais importante do que a sua estabilidade e rigidez, assim como
a ausência de patente e direitos de propriedade intelectual podem contribuir com
a disseminação de uma tecnologia. A bomba bush é um padrão no Zimbabwe,
fabricada por várias empresas, que podem modificá-la e melhorá-la,
disseminando-a por todo o país. Ela traz o água à população, mas também
saúde e sociabilidade devido à forma como é construída e instalada, garantindo
uma baixa contaminação da água, o que faz com que vilas e de certa forma toda
uma nação se desenvolva em torno dessas bombas. Tudo isso sem uma rede
sólida ou uma caixa-preta bem fechada, mais sim um artefato “fluido”, aberto à
modificação e aperfeiçoamento, o que é, segundo as autoras, essencial para o
sucesso da bomba.
Em seus estudos, Latour demonstra que um ator nunca age sozinho.
Como no caso de Pasteur (Latour, 1988), é necessário um "exército" de
parceiros e humanos e não-humanos, uma rede agindo junto. Mas, ainda assim,
sugere que é necessário um "general", um estrategista por trás de tudo, que se
encarrega de buscar aliados e direcionar suas ações, ou seja, um ponto de
passagem obrigatório. Porém, no caso da Bomba Bush, o seu inventor (Tommy
Murgatroyd) não age como um Pasteur sendo o centro e articulador de sua rede,
muito pelo contrário. Ao possibilitar que todos possam criar e vender a sua
versão da bomba, permite assim que o artefato aja como um ator e mediador (ou
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actante), reproduzindo-se e disseminando-se em uma rede cada vez mais
ampla, porém, fluida e sem um centro definido. Como apontam as autoras:
Latour's study shifts the attention from the general to the army, from Pasteur to all other
elements that worked just as hard in eradicating the disease. There is, however, a next
step to be made. For even if Latour's work shifts Pasteur out of the center by pointing to
the network he needs, it also suggests (or has been read as suggesting) that innovation,
even if it turns out to be the work of a large army, does need a general in order to spread
out. This Machiavellian reading of Latour says that technologies depend on a power-
seeking strategist who, given a laboratory, plots to change the world. And this is where
the Bush Pump and its designer come in. They allow us to frame a different vision. The
success of a technology does not necessarily depend on an engineer who masters the
situation and subtly subdues everyone and everything involved. (...) Effective actors need
not stand out as solid statues but may fluidly dissolve into whatever it is they help achieve
(de Laet y Mol, 2000, p.4).
Ainda, será que as redes formadas nos casos de tecnologias sociais
contam o que a TAR (Callon, 1986; Latour, 2000) chama de “ponto de passagem
obrigatório”? Segundo Callon (1986), um ponto de passagem obrigatório é um
dispositivo de rede, que visa tornar seus articuladores (mediadores)
indispensáveis aos demais atores-rede através da definição de regras, papéis e
configurações que centralizam os atores humanos e não-humanos em torno de
um ponto dessa rede controlado pelos seus articuladores. Pode ser uma
convenção, uma lei, um acordo, ou um artefato tecnológico que unifique todos
os atores-redes em torno de um objetivo e assegure o papel de cada um nessa
rede. É uma forma de controle que visa estabilizar os movimentos de translação
dos atores de uma rede em torno de seus mediadores, ou seja, aqueles atores-
rede que possuem força suficiente para alistar e controlar os demais atores-rede
28
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(humanos e não-humanos). Latour (2000) ainda enriquece esse conceito
conectando-o ao de caixa-preta:
Não se deve deixar de notar que a caixa-preta fica entre esses dois sistemas de alianças
[sociograma e tecnograma], que ela é ponto de passagem obrigatório interligando os
dois e que, quando é bem-sucedida, concentra em si o maior mero posvel de
solidíssimas associações, especialmente se tiver sido transformada em autômato. É por
isso que chamamos essas caixas-pretas de "fatos inegáveis", ou "máquinas altamente
sofisticadas", ou "teorias eficazes", ou "provas irrefutáveis". Todos esses adjetivos que
aludem a força e solidez apontam corretamente para o mero desproporcional de
associações feitas em tomo dessas caixas-pretas, tão desproporcional que realmente
mantém no lugar a multidão de aliados (Latour, 2000p. 230 - negrito nosso).
E ainda:
(...) duas coisas são necessárias para construir uma caixa-preta: em primeiro lugar, é
preciso alistar outras pessoas para que elas acreditem na caixa-preta; em segundo lugar,
é preciso controlá-las, para que aquilo que elas adotam e disseminam permaneça mais
ou menos inalterado (Latour, 2000, p. 199 negrito nosso).
É preciso notar que esses conceitos foram formulados tendo principalmente
as tecnologias convencionais (que visam ser competitivas e monopolizadoras de
demandas) em mente e que as tecnologias sociais se diferem em pontos
importantes. As tecnologias sociais são pensadas desde o princípio para serem
abertas ao uso e modificação, sem propriedade intelectual ou tendo em vista um
controle de mercado sobre a demanda. Como vemos no caso das bombas Bush
do tipo B (de Laet y Mol, 2000), elas se difundiram justamente porque não
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mobilizadores tentando criar pontos de passagem obrigatórios e manter o
controle sobre essa rede e seus artefatos.
Na mesma direção, temos o caso do P1MC (Programa Um Milhão de
Cisternas). Ligado a ações governamentais de combate à seca e de
desenvolvimento regional com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social
(MDS), o P1MC estruturou-se a partir de uma lógica de controle descentralizado,
envolvendo uma complexa rede de organizações não-governamentais e órgãos
ligados às administrações municipais no Semi-Árido Brasileiro (SAB). No
contexto, desse esquema de organização, o MDS não exerce um controle total
sobre o Programa, mas um papel de coordenação, cabendo às organizações
que constituem a Articulação do Semiárido (ASA) o planejamento e decisão
conjunta sobre as regiões a serem atendidas, os materiais utilizados, a forma de
construção de cisternas, etc. Dessa forma, por exemplo, o programa Uma Terra
Duas Águas (P1+2) aproveitou a experiência e o modelo das cisternas do P1MC
para viabilizar a agricultura no semiárido, inclusive realizando modificações no
reservatório de água para adaptá-los a essa finalidade e combinando com outras
tecnologias sociais como bombas e sistemas de irrigação. O mesmo foi feito pelo
programa Cisternas nas Escolas, que também se apropriou da tecnologia
desenvolvida pela ASA no P1MC (DIAS, 2013).
Os exemplos do P1MC e do P1+2 ilustram que, após serem concebidas e
mobilizadas através de um projeto, programa governamental ou movimento
social, as TS são incentivadas a se difundirem livremente, por quem quer que
deseje utilizá-las, reproduzi-las e modificá-las. De forma ideal, não deve existir
um centro nessa rede ou ponto de passagem obrigatório.
30
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Portanto, os ESCT e a TAR mais especificamente são excelentes
ferramentas para se estudar os casos de inovação tecnológica convencionais,
mas não menos interessantes para se pensar as tecnologias sociais, que o
processo cnico e social de construção e funcionamento de ambas são muito
semelhantes em termos sociológicos. No entanto, a quase totalidade dos casos
estudados e das discussões em que os ESCT e a TAR se debruçaram foram
feitos tendo as tecnologias convencionais em mente, o que implicou em
conceitos e generalizações que não necessariamente correspondem à totalidade
das práticas científicas e tecnológicas existentes, em especial as tecnologias
sociais que, historicamente, foram marginalizadas não nas universidades e
nas políticas públicas, mas também do debate sociológico a respeito da ciência
e da tecnologia. Isso gerou uma grande lacuna nessas discussões, como se as
tecnologias sociais não existissem, não fossem reconhecidas enquanto práticas
científicas legítimas ou como se o tivessem relevância na relação ciência,
tecnologia e sociedade atual.
Por consequência disso, a TAR ignora aspectos que são essenciais quando
se analisa tecnologias sociais, como a abertura e fluidez dos artefatos
tecnológicos, o incentivo à transgressão e modificação, a apropriação desses
artefatos pelos usuários finais e, o mais importante, a não centralização dessas
redes por meio de um ponto de passagem obrigatório, que, nas tecnologias
convencionais, visa controlar o lugar e atuação de cada ator dentro da rede, o
que é impensável quando se fala de TS e especialmente AST.
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Propondo ajustes conceituais à TAR para o debate das
Tecnologias Sociais
De forma geral, as tecnologias convencionais são pensadas desde o início
para gerarem o que a TAR chama de caixas-pretas, ou seja, artefatos de alta
complexidade, geralmente de difícil compreensão para os usuários e produtores
diretos, protegidas por patentes ou de grande segredo industrial, feitas para
serem utilizadas e popularizadas sem que se compreenda o seu funcionamento
ou que se viole o seu script, de forma a tornar impossível a sua reprodução ou
modificação por pessoas não autorizadas ou treinadas. As tecnologias sociais,
por outro lado, pretendem ser tratadas, como caixas-abertas, ou seja, um
conjunto de elementos heterogêneos conectados de forma funcional para
realizar uma função, mas de fácil compreensão, sem proteção intelectual,
idealizada e construída em conjunto com os próprios usuários finais, de forma
que possa ser reproduzida e aperfeiçoada livremente, como os softwares de
código aberto e as gambiarras.
Diferente das caixas-pretas analisadas na literatura consagrada da TAR
(Latour, 2000), a noção de caixa-aberta traz justamente a ideia de que essa
caixa, apesar de reunir elementos sociotécnicos de forma viável e funcional,
nunca é finalizada (está sempre aberta à melhorias, manutenções e
modificações pelos próprios usuários finais), muito menos protegida, que a
democratização dos recursos econômicos e tecnológicos é fundamental na
perspectiva da AST. Esses dois pontos são cruciais quando pensamos as TS de
acordo com os princípios da AST, que para esses autores é contraditório
pensar TS desenhadas como uma tecnologia convencional, fechadas e
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protegidas, como os kits de luz fotovoltaicos analisados por Akrich (1992), ou
seja, uma caixa-preta.
Tamm podemos pensar as TS como “pontos de passagem não-
obrigatórios”, ou simplesmente pontos de passagem, que, mesmo quando
se cria um artefato funcional a ser difundido pelos movimentos, como as
cisternas do P1MC ou as Bombas Bush do Tipo B, eles não são pensados para
se tornarem rígidos e centralizadores. Pelo contrário, visam deixar em aberto o
papel que cada um pode desempenhar nessas redes, assim como a sua
modificação e difusão, que deve poder se dar livremente. Afinal, como nos
lembra Thomas (2012), no contexto das alianças que movimentam as dinâmicas
e trajetórias sociotécnicas a partir das quais experiências de TS podem ser
desenvolvidas, ainda que formas de coordenação mais verticalmente
hierárquicas sejam possíveis, o alinhamento em torno da atribuição de sentido
de funcionamento é um processo auto-organizado construído pelo conjunto
heterogêneo de atores que compõem essas alianças.
Ao contrário do conceito de ponto de passagem obrigatório proposto por
Callon (1980, 1986) e incorporados nas análises de Latour (2000) quando fala
de caixas-pretas, que indica uma tentativa de controle por parte dos principais
articuladores (ou mediadores) de uma rede ao definir os papéis e posições de
cada ator-rede por meio traduções (ainda que seja apenas um esforço ou estado
temporário), as TS pensadas desde o princípio de acordo com os princípios da
AST nunca criam pontos de passagem obrigatórios, ou seja, não visam o
controle dos usuários envolvidos em um programa ou iniciativa que envolve TS.
Como no exemplo da Bomba Bush do tipo B, essas redes podem se devolver
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sem um centro de controle, sendo aberta, inclusiva e democrática em suas
decies. Dessa forma, podem se difundir a partir de múltiplos pontos, livremente
apropriados pelas comunidades interessadas e, o mais importante, sem um
“general” controlando pais e posições nessas redes, se essas propostas de
TS realmente quiserem de distinguir das tecnologias e processos de inovação
convencionais no contexto do capitalismo. Em outras palavras, todos podem ser
mediadores, mas não controladores.
Retomando a discussão sobre o papel dos usuários, de acordo com os
princípios da Adequação sociotécnica (Thomas, 2008, 2012, Dagnino, Brandão
e Novaes, 2004) os usuários têm um papel fundamental no desenvolvimento,
implementação, uso e aperfeiçoamento das tecnologias sociais, sendo,
inclusive, o polo mais importante da rede, que a AST tem como principal
objetivo exatamente dar condições de autonomia aos usuários ou trabalhadores
envolvidos. Afinal de contas, é impossível pensar e implementar os ideais da
AST como pluralidade, horizontalidade, integração com a comunidade (Thomas,
2008), apropriação de conhecimento técnico, contínuo aperfeiçoamento pelos
usuários, ajuste do processo de trabalho, autogestão, geração de renda e busca
de autossuficiência (Dagnino, Brandão e Novaes, 2004) sem levar em conta em
primeiro lugar os usuários.
Dificilmente um único usuário dá conta sozinho de desmontar,
compreender, modificar e disseminar uma tecnologia que visa ser social. Como
mostrado nos casos citados, forma-se uma rede de usuários que trocam
experiências, conhecimentos e disseminam as tecnologias, como uma caixa-
preta às avessas, aberta aos usuários finais.
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Ainda, assim como Latour (1994) faz com as demais simetrias, é difícil
dizer onde termina um polo e começa outro sendo humano e não-humano,
social e técnico, sociedade e natureza apenas tipos ideais possíveis de se
separar mentalmente somente ao fim do processo (estabilização). Da mesma
forma, usuário e produtor na perspectiva da AST são duas faces da mesma
moeda, tendo seus papéis combinados por excelência no caso de uma TS bem
sucedida, que não venha com uma solução pensada de cima para baixo, mas
sim conjuntamente com os usuários em todas as etapas do processo.
O caso do projeto Água Doce (Costa e Abreu, 2013) e do projeto Um
Milhão de Cisternas (Dias, 2013) são emblemáticos nesse sentido, sendo que a
atuação dos usuários é fundamental na fase de manutenção no primeiro caso e
de construção no segundo caso. A solução de uma importante demanda social
(no caso, o acesso à água) e autossuficiência dos usuários nesses casos
tamm são os objetivos principais no caso dessas TS que efetivamente
cumprem os princípios da AST, deixando o lucro dos produtores dos materiais e
equipamentos em segundo plano, o que seria quase impossível se se tratasse
de uma tecnologia convencional, ainda que fosse parte de uma política pública.
Ao se pensar esses projetos e programas como pontos de passagem não-
obrigatórios, ou seja, redes abertas, que mobilizam atores e projetos sem um
centro monopolizador dos recursos humanos e o-humanos (ou caixa-preta),
podemos fazer um melhor uso dos conceitos da TAR quando aplicados a
análises e estudos de caso de tecnologias sociais, alinhados aos princípios da
AST.
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Considerações finais
Considerando a vasta literatura e reflexões ainda em discussão no meio
acadêmico e nos movimentos sociais sobre as tecnologias sociais, buscamos ao
longo deste texto novas ajustes conceituais a partir de estudos de casos que
contemplam os aspectos que procuramos debater em nossa análise, que busca
relacionar estudos de casos de TS em conformidade com a AST com as
ferramentas analíticas e conceituais da Teoria Ator-Rede.
Para nós, a visão de Tecnologia Social e Adequação Sociotécnica dos
autores latino-americanos, especialmente Dagnino (2008, 2014) e Thomas
(2008, 2012) é fundamental para se entender o papel dos usuários na relação
com as tecnologias sociais. Nessa perspectiva, de nada basta “soluções
mágicas” que venham de cima para baixo se os trabalhadores ou usuários
envolvidos com a solução tecnológica adotada para suas necessidades
específicas, como acesso à água, energia ou renda, não estiverem
completamente envolvidos com o desenvolvimento e gerenciamento
sociotécnico da TS. Se a AST visa a superação de uma adversidade e
especialmente a autonomia do trabalhador, o usuário deve ser, portanto,
protagonista da ação, desde sua idealização até a construção, manutenção,
aperfeiçoamento, execução e replicação.
Nesse sentido não podem existir, a priori, caixas-pretas ou pontos de
passagem obrigatórios no campo das tecnologias sociais, os quais, desde a sua
concepção, visam a modificação e apropriação dessas tecnologias pelos
usuários. Assim como os softwares de código aberto e as gambiarras, difundidas
por toda parte onde necessidades técnicas não respondidas pelos fabricantes
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tradicionais, as tecnologias sociais são como caixas-abertas aos usuários finais:
elas reúnem uma série de elementos heterogêneos (sociais, políticos e técnicos)
tanto em sua idealização e fabricação, como em seu estado final na forma de
um artefato tecnológico. Porém, diferentemente das tecnologias convencionais,
que são pensadas desde o princípio para serem fechadas, ou seja, protegidas
do usuário final fisicamente e idealmente (já que seu funcionamento é muitas
vezes incompreensível ou mesmo um segredo patenteado) -, as tecnologias
sociais visam exatamente o contrário: o entendimento, apropriação, replicação e
o aperfeiçoamento do artefato tecnológico pelos usuários.
Da mesma forma, em se tratando de tecnologias sociais, especialmente
quando nos referimos à Adequação Sociotécnica, não existe de forma
apriorística pontos de passagem obrigatórios como definidos pela TAR.
Idealmente, não deve haver um centro controlador-disciplinador dos papéis de
cada ator-rede em um empreendimento autogestionário, movimento social ou
programa social relacionado à difusão de uma tecnologia social. Pelo contrário,
mesmo quando há o agenciamento na forma de uma rede sociotécnica, esta
pode perfeitamente ser descentralizada, aberta à apropriação e modificação
pelos membros e usuários. Ainda que haja movimentos de translação na forma
de uma rede sociotécnica em projetos de AST, a rede serve como um ponto de
passagem o-obrigatório, ou seja, como um guia, um apoio aos usuários,
colocando-os em contato e contribuindo com sua livre difusão, mas nunca como
centro controlador.
Sendo assim, como procuramos demonstrar, a TAR pode ser
extremamente útil para a análise de tecnologias sociais, que seus conceitos
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dão conta da maioria dos aspectos sociais e técnicos envolvidos na concepção
e desenvolvimento de tecnologias sociais, como os conceitos de ator-rede,
mediação, atores não-humanos, etc. Porém, esperamos ter deixado claro que é
impossível pensar as TS, especialmente as que atendem os requisitos da AST,
sem levar em conta o papel fundamental dos usuários enquanto criadores e
modificadores de tecnologias que são necessariamente livres, libertadoras e
abertas à apropriação pelos usuários, o que implica numa redefinição dos
conceitos de caixa-preta e ponto de passagem obrigatório nesses casos.
Esperamos que com isso a TAR possa ser utilizada com mais frequência
na análise de experiências envolvendo tecnologias sociais, que suas possíveis
limitações são em grande parte superadas pela adoção dessas ajustes
conceituais em concordância com os ideais da AST. A modificação, apropriação
e liberdade dos usuários de tecnologias são muitas vezes deixadas de lado em
soluções que insistem em simplesmente importar tecnologias de outros espaços
e chamá-las de “sociais”, simplesmente por atenderem uma necessidade básica
do ser humano.
Acreditamos que estudos que visem analisar as TS a partir de conceitos
da TAR podem utilizar suas ferramentas analíticas de acordo com as formas
aqui expostas. Além de trazer conformidade com os princípios da AST, esses
ajustes podem ser utilizados em estudos de caso para se avaliar as TS no que
se refere a aspectos como a horizontalidade organizacional, grau de abertura
dessa rede a novos usuários, livre modificação das tecnologias pelos usuários,
democratização dos recursos e decisões, etc. Essa é uma possibilidade a ser
desenvolvida em futuras reflexões.
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Artículo recibido el 25 de noviembre de 2020
Aprobado para su publicación el 26 de junio de 2021